domingo, 6 de outubro de 2013

A raiva da vida

     Naquele domingo, ela acordou raivosa. Engraçado como os sentimentos surgem, sem que sejam chamados. Parece que não há como determinar: agora quero sentir amor; agora prefiro o ódio; não, é melhor amar; bem bom seria se, neste momento, eu me enchesse de saudade. Não, eles vêm, tomam conta da gente sem serem chamados.
     Ela sentiu raiva da cama, que a fez perder algum tempo, pois ficara ali,  atirada, sem nada fazer, como se a vida fosse feita de um punhado de momentos de relaxamento. Ficou com raiva pois a borracha do vaso estava velha, rachada e, ao dar descarga, inundava uma boa parte do piso. A raiva foi maior, quando, ao lavar o rosto, quase queimou as rugas, aquelas infelizes que não paravam de aparecer para dar bom dia, boa tarde, boa noite. Havia aberto a torneira para o lado da água quente. Enchera-se de raiva quando, ao abrir a janela do quarto, o vento que estava  forte, além de esfriar aquelas que quase haviam se queimado, fez a cortina esvoaçar e enrolar-se em seus cabelos, cegando-a até desvencilhar-se. Depois "delicadamente" ele, que soprava do sul,  fez a porta do quarto bater, trazendo poluição sonora aos seus ouvidos, que jã não suportavam muitos ruídos. Mais uma vez o sentimento tomou conta dela quando, ao chegar à cozinha, louca para tomar seu desjejum, viu a pia lotada de louças e panelas da noite anterior. Por que deixara para fazer depois o que  podia...? O ditado a vem comandando há tanto tempo, mas às vezes, ela insiste em não obedecê-lo. Dessa vez a raiva foi dela mesma. Imaginem a raiva que deu quando, depois da louça e panelas lavadas, deu-se conta de que não tinha ido ao supermercado e de que não tinha mais café. Café! Como ela iniciaria o dia, esse que começara tão cheio de raiva, sem, pelo menos, um gole de café? Tomou o achocolatado dos netos. Sentou-se frente ao computador para ler os emails, e a raiva renasceu, só havia emails de propaganda, nenhum de algum amigo, muito menos com palavras amorosas. Ah, palavras amorosas! Há quanto tempo não ouvia! Fechou raivosamente o programa de emails, que levou um tempão para obedecer seus comandos, seu PC estava velho. Velho como ela! Entrou no tal do Facebook, e lá só viu fotinhos de crianças, como se todos tivessem insatisfeitos com seu presente e precisassem lembrar a época em que a raiva não tomava conta das pessoas.
     Parou tudo, dirigiu-se ao quarto de dormir, deitou-se novamente em seu leito, fechou os olhos. Lembrou as histórias que ouvia de seu pai quando era pequena, lembrou as festas, cheias de música e alegria, que aconteciam em sua casa, lembrou as brincadeiras com suas amiguinhas, lembrou o dia em que aprendeu a andar de bicicleta no grande parque onde, todos os domingos, seu pai a levava a passear. Mastigou a raiva, engoliu-a com a doçura das lembranças, esqueceu-a e encheu-se de felicidade. Tomou um banho, vestiu uma roupa confortável e foi para a rua viver as alegrias da vida de hoje. Diferentes, mas alegrias.