quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

O que vale

     Em meio ao silêncio da noite, ouviam-se as batidas de um sapatos de saltos, parecendo dar ritmo a uma cadência nervosa, dramática. Entre elas o bater sincopado e leve de calçados pequenos, infantis. Estes corriam mais do que aqueles, mas percorriam a mesma distância. Eram a menina de tranças e sua mãe.
     A festa de casamento estava linda. Os noivos dançavam ao som da pequena orquestra com músicos amadores, amigos. A maioria dos convidados se empanturravam com as delícias salgadas e doces. Havia muita bebida, bebida boa e variada. A diversão transcorria solta e sem preocupações. Não havia celulares na época, as notícias, boas ou ruins, demoravam mais a chegar. Aproveitava-se mais serenamente os momentos.
     De repente um homem, uma chamada ao canto, um desespero, um procurar a filha, um descer as escadarias do clube, um ganhar a rua e correr. Era quase meia-noite. Não havia ninguém pelas calçadas, as casas pareciam dormir. De tempos em tempos o chão clareava iluminado pelas luminárias. Às vezes, o espaço entre um clarão e outro tornava-se mais longo. O zelador dos postes havia esquecido de trocar alguma lâmpada queimada. As luzes falhavam, porém as passadas, não. Tinham pressa, tinham ansiedade, tinham... horror.  Tinham de alcançar a próxima transversal, haviam percorrido quatro quarteirões e meio. Faltava pouco.
     Chegaram, viraram à esquerda e entraram na rua da casa da avó. Tudo ficou muito claro. Parecia que se fizera dia. Um calor inesperado tomou conta das duas. Foram diminuindo o ritmo e, aos poucos o correr ansioso foi se transformando no caminhar pesado indeciso, medroso. 
     Havia muita gente. Da casinha de madeira em cujo jardim a menina gostava de brincar, nada mais sobrava. Enquanto a cabeça da mãe virava-se para todos os lados à procura da sua mãe, a menina, depois de soltar-se das mãos maternas corria por entre mulheres, crianças, homens, bombeiros, vizinhos, atrás da sua avó. Não demorou muito, encontrou-a sentada numa cadeira cedida por um dos moradores dos arredores. Ela estava sorridente, feliz, viva!

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Saber viver

     Aos poucos ele começou a se dar conta de que não enxergava mais como nos tempos de jovem. Precisava de óculos para ler de perto, para dirigir ainda estava tudo bem. Um tempo depois, ao revalidar a carteira de motorista, foi surpreendido com a reprovação no exame de olhos. Não enxergava bem de longe. À medida que os anos passavam o grau das lentes aumentava, tanto para perto quanto para longe.
      Um dia, começou a abanar, de vez em quando, na frente do rosto. Via mosquinhas. Ninguém as via. Começou a acostumar-se com as manchas negras nos olhos. Não saía mais de casa, mas andava por todos os aposentos tranquilamente, conhecia todos os pequenos cantos, todas as voltinhas que tinha de dar para não se chocar com nada. Quantos passos da porta até o vaso, depois dois à esquerda até a pia. Nada o incomodava, estava feliz e se achando esperto, driblando as carências da vida.
     Para não ter muito trabalho, tinha o hábito de usar o mesmo copo, a mesma xícara o dia todo. Os pratos não. Usava quantos fossem precisos. Tomava cafezinho várias vezes ao dia. Terminava um bule que fazia pela manhã. A partir das seis horas da tarde não mais o bebia, não porque havia terminado, mas por perder o sono. Como sabia que eram seis horas? Claro, ele não enxergava mais os ponteiros do relógio, aliás o relógio de pulso dormia numa das gavetas da cômoda no seu quarto. Sua vida agora era cronometrada pelos programas da televisão que ficava ligada da manhã à noite. Seu organismo lhe avisava quando devia sair da cama ao amanhecer. Desse momento em diante, vivia com os ouvidos atentos a tudo que passava na televisão.
    Num domingo de verão, um de seus filhos veio visitá-lo. Eram umas três horas quando ele chegou. Viera sozinho, deixara a esposa na casa da sogra. Depois do casamento aceitara um posição numa empresa em outro estado. Via o pai poucas vezes. Sabia da sua dificuldade de visão, porém o pai disfarçava muito bem, não queria preocupar ninguém.
     Depois de trocarem algumas poucas frases, o pai ofereceu um café ao filho. Este fez questão de ir à cozinha com o progenitor que fez tudo como se tivesse vendo claramente. Passou café novo, pegou os biscoitos, tirou uma xícara do armário e colocou tudo sobre a mesa, inclusive a própria xícara, a do dia. O filho sentou-se à mesa, e o pai trouxe o café recém passado, exalando o perfume conhecido da casa. Quando foi servir-se, o filho gritou:
     - Pai, a mesa e a tua xícara estão repletas de formigas!
     - E daí? Formiga faz bem para os olhos!