segunda-feira, 31 de março de 2014

Uma viagem!

     Escolhi um acento no corredor. Dali, deitando um pouco a cabeça, poderia ver, mesmo que ao longe, a estrada lá à frente. Também poderia levantar sem incomodar ninguém quando estivesse cansada de estar sentada. Na dor dos joelhos, esticaria as pernas em diagonal entre os bancos. O trajeto era conhecido, não precisava estar à janelinha, como as pessoas falavam. Lembro que minha mãe, quando viajava, sempre dizia que preferia ir à janelinha! Janelinha! É, eram bem menores do que as de casa.
     Perto da hora do embarque eu já estava a postos, tinha pressa, queria chegar ao meu destino. À minha frente, na fila para embarcar no ônibus, uma pequena mulher, magrinha, risonha, sim, sempre rindo, aquele riso  que as pessoas envergonhadas expõem. Não tinha a maioria dos dentes. Enrugada, muito enrugada, cabelos em desalinho, mas presos. A aparência era de que não recebiam muita água e xampu. Xampu? Imagina! Pediu auxílio ao motorista que fiscalizava as passagens. Não ouvi, ela falava baixinho e rindo. A timidez era enorme. Dentro do ônibus,  notei que estava perdida. Cheguei nela  e perguntei se precisava de ajuda. E ela me confessou quase num sussurro, porém sempre com o sorriso desdentado, que não sabia ler. Mostrei-lhe o seu lugar e fui procurar o meu.
     Sentei-me, ajeitei o pequeno travesseiro, que sempre me acompanha, na região da lombar, enchi de ar a almofadinha em forma de ferradura, coloquei-a no pescoço, tirei os óculos escuros, guardei na pochete que trazia colocada no ombro e atravessada no peito, certifiquei-me de que estava bem fechada, fechei os olhos e pronto: podíamos partir, tudo estava no seu lugar!
     Isso era o que eu pensava. Para começo de conversa, a senhora, na janelinha, ao meu lado, resolveu puxar conversa comigo. Aqueles assuntos interessantíssimos e inusitados, tipo, clima, velocidade, paradas do ônibus. Epa! Eu não estava numa viagem direta? Não, não estava! Em poucos minutos teríamos uma parada numa pequena cidade, Santa Rosa, não à beira da rodovia, à direita, uns dez quilômetros para dentro. Tudo bem. Lá entrariam alguns, desceriam outros. Bem informada a minha companheira. Difícil era entender o que ela dizia. O sotaque não era meu conhecido, havia mais vogais do que o normal nas palavras, quase sempre um "u". Ela desembarcaria, não na primeira, mas na segunda parada. Meu Deus, teria mais uma parada. Tudo bem, quando ela descesse, eu tomaria conta do espaço.
     No banco exatamente à frente do nosso, estavam sentados um rapaz e uma senhora, acho. Pelo menos as vozes deles me davam essa informação. Ele respondia, concordava, sempre com poucas palavras, para não dizer com meias palavras. Ela falava muito, e a sensação que eu tive, através das frases que chegavam aos meus ouvidos, é que ela tentava convencê-lo a seguir uma religião, um método, uma terapia, da qual ela era seguidora e dava garantias de que tudo mudaria para ele se a ouvisse. É claro que não desliguei.
     Já tínhamos passado da primeira parada e chegado à cidadezinha onde minha companheira me deu adeus e sumiu em meio à poeira que subiu por causa dos pneus no chão batido. Tudo iria melhorar, pensei. Acomodei-me à janela, fiz todo o ritual para proteger a cervical, a lombar, enfim todos os acompanhamentos da tal da velhice. Abri a cortina de pano grosso e uma felicidade tomou conta do meu ser pela maravilha de paisagem que era possível apreciar. Suspirei fundo e senti um pontapé nas costas. Era a menina sentada atrás de mim que insistia em desobedecer sua mãe que a mandava não colocar os pés no banco da frente, o meu. 
     


quarta-feira, 26 de março de 2014

O vizinho do décimo quarto andar

     A campainha tocou, era o rapaz do décimo quarto andar. Por que viera até mim? Poucas vezes nos encontráramos. Mal e mal nos olhávamos, só fazíamos um movimento com a cabeça, como se disséssemos "Ok, te cumprimentei!" Morador do prédio há alguns anos, vinha preparando aos poucos o apartamento para quando casasse.
     Nunca alguém vira a namorada ou noiva. Os comentários eram de que ela morava no interior. Ele, ao interior, nunca fora. Estava sempre batendo aqui, furando ali. Não tinha pressa, tinha obsessão pela perfeição, era o que diziam. Nunca estava satisfeito. Trocava a cor das paredes a cada ano. A cozinha reformara mais de duas vezes, assim que via novidades. O colchão da cama de casal também já trocara, dizia que não duravam como falavam nas propagandas.
     Fazia muitas compras no supermercado, parecia que morava com muitas pessoas, como se precisasse alimentar um batalhão. Jornais, assinava todos da cidade, não colocava fora nenhum. Quase que semanalmente entregavam algum produto comprado desses sites que anunciam promoções. Tinha umas três bicicletas, jamais fora visto pedalando. A tele-entrega da farmácia diariamente trazia-lhe encomendas
     Era realmente estranho o rapaz do décimo quarto andar. Se algum vizinho, o zelador ou o síndico batesse à porta dele, não tinha a delicadeza de convidá-los a entrar. Ninguém sabia o que existia além da porta, agora de ferro, mas já fora de madeira. Só o que passava pela portaria era conhecido. E passava muita coisa, como passava!
      De repente, quem deixou de passar pela porta, pelos corredores, pela portaria foi o rapaz, não mais tão rapaz assim, muitos anos haviam transcorrido. Nada mais chegava para ele, nada mais lhe era entregue. Os conhecidos do edifício preocupados decidiram arrombar o apartamento. Ele poderia ter tido um mal súbito. Mal conseguiram abrir a porta, caixas tiveram de ser empurradas para que pudessem entrar. Lá existia tudo o que se pudesse imaginar. Tudo empilhado, amontoado, empoeirado.
     Agora, ele está aqui, frente a minha porta. Através do olho mágico vejo sua impaciência. Está com ar cansado. Por onde terá andado. Continua só. Abro ou não abro?

sábado, 15 de março de 2014

Conversa com o vento











Oh vento que hoje me leva
sem me dizer para onde
Nem tempo tenho de ver a bela
que de mim se esconde.

Sou uma pobre folha seca,
estou parece no último ato,
perdendo a doce  beleza
do meu saudoso plátano.

Por que me levas assim tão forte?
Por que não me deixas ir pro norte?
Por que queres me levar à morte?

Pro norte está a vida
Minha origem partida!
Agora, vento, me sinto perdida!

(Soneto inspirado numa foto da minha amiga Elaine Blank)