sábado, 30 de outubro de 2010

Orgânico ou Inorgânico?

Hoje vou dormir tranquila. Finalmente o mistério foi desvendado. Vinha passando por momentos de terror e já nem queria ir para a cama à noite. Os ruídos que saíam pelos buraquinhos do aparelho de ar condicionado no meu quarto estavam me deixando paranoica.
Há algumas semanas atrás, eles começaram. Sim! Eram sons quase indecifráveis. Começavam à tardinha, durante a noite eram intermitentes e, pelo amanhecer, aumentavam muito. Às vezes pareciam gritinhos, havia momentos que parecia que bichos se batiam. Mas também, raras vezes, na verdade, ouvia-se canto de passarinho. Uma incógnita!
Houve uma noite em que acordei ouvindo um som que parecia um ser humano dando assoprões muito fortes. Lembro que me levantei, dei umas batidas no aparelho, que já era velho e nem funcionava mais. E eu me perguntava: “O que estou fazendo com isso ainda aqui, se nem sequer me refresca e ainda me amedronta.” Cheguei a pensar em ratos; porém, como eles chegariam aqui no nono andar, como entrariam nas pequenas frestas entre a parede? E o maldito sem função.
Chamei um analista de uma firma de desratização. Ele me deixou apavorada! Disse-me que precisariam fazer um trabalho bem forte, pois tudo demonstrava que havia uma comunidade bem grande das tais criaturas que perturbavam meu sono com seus sonzinhos. Eles estavam ali, sim! Chamei também um avalista da fábrica de protetores de aparelhos de ar-condicionado que até fezes dos intrusos o tal sujeito encontrou. Enfim estava enlouquecendo pois não sabia o que fazer: colocar protetores? Fazer uma desratização? Comprar um aparelho de ar condicionado novo?
Antes de contar a minha opção, saibam que, um dia, o zelador do prédio para quem contei dos assoprões que eu ouvira, afirmou-me que aqueles bichos que lá estavam até fumavam. Já me imaginei, andando de um lado para o outro, sem conseguir dormir, e os malditos intrusos bem sentados dentro do aparelho de ar-condicionado, de pernas cruzadas, fumando um belo charuto cubano. A situação estava ficando tragicômica.
Optei por desfazer-me daquela tralha e comprar um novo, afinal, na hora de trocar, descobriríamos tudo. Porém o terror era tanto que diariamente rezava para que, quando retirassem o velho, as criaturas não invadissem minha casa! Chegou o dia! Fechei a porta de meu quarto e permaneci dentro para garantir que nenhuma criatura aterrorizante se escondesse em alguma fresta para, depois, me amedrontar, aterrorizar, tirar meu sono.
Os colocadores foram retirando lentamente o velho e, para nossa surpresa e satisfação, lá estavam dois belos e frágeis filhotes de andorinha. Ela, a andorinha mãe voava em frente à janela, tendo atrás os filhotes que já sabiam voar. Havia desespero em todos eles. Onde iriam repousar de seus primeiros voos, como ela daria comida para os dois que ainda não voavam?
Fiz a minha parte: construí, a partir de uma garrafa “pet” cortada, um novo ninho, forrado com papel picado e telhadinho para protegê-los da chuva e do sol. Quando o novo ar estava colocado, o novo ninho foi devidamente afixado na parede, do lado de fora da janela, em cima do aparelho.
Será que os aterrorizantes morcegos, que todos confirmaram estar ali, haviam se transformado em inofensivas andorinhas. Não sei! Quatro dias depois, um dos filhotes saiu voando e não mais voltou. O outro, o outro não resistiu às intempéries e morreu. Fiz um enterro digno de um passarinho que ousou perturbar o meu sossego: foi para a lata do lixo bem enrolado em jornal do dia. Mas ainda me deu trabalho, pois surgiu a dúvida: lixo orgânico ou inorgânico?
Cuidado! Essa cidade está cheia de morcegos que invadirão as suas casas quando menos esperarem!

Perdidos na tarde!

Ai, meu Deus do céu! O que fui fazer! Que droga! Sempre me meto nestas enrascadas! Por que não sosseguei no meu canto. Vou parar de borboletear um pouco e tentar descobrir onde estou. É, aqui tá bom, parece que ninguém vai estranhar a minha presença, também... não tem ninguém por aqui mesmo. Hum, deixa eu olhar bem para todos os lados. Putz! Acho que tô perdida mesmo! E aquele sem-vergonha do encosto que me arrumaram, nem pra sair atrás de mim e me acompanhar serve. Só fica lá me pedindo coisas, comidinhas, bebidinhas e outras cocitas más, que só me irritam.
Vou chamar por socorro, quem sabe alguém se apieda de mim e me auxilia a encontrar o caminho de volta.
- Socoooooooooooooooooorrrrro! Socooooooorrroooo! Que sssaaaaaaacccooooo! Não estããããããããoooooo me ouviiiiiiiiiiiiiiinduuuuu!
É, tá difícil! Hi! Só o que me faltava agora. Nunca pensei que poderia encontrar essas duas por essas bandas.Nâo sei por que não param de me olhar! Não são donas desse lugar aqui! Humm!! Lá vem elas andando meio de lado para disfarçar. Com certeza, vêm me tomar satisfação por algum motivo. Mas como não sou de andar por aí, sem rumo, desprotegida,afinal, sou uma moça fina, de trato, moro muito bem, nem vou responder se essas mucreias vierem falar comigo. Não devo me misturar. Vou disfarçar também e bater asas para outro lugar. Quem sabe encontro alguém que me ajude.
Ui, não devia ter corrido tanto, não estou mais acostumada a dar tão longos voos. Não estou gostando desse lado aqui. O sol está me queimando, o chão é irregular, ai que falta de conforto! Olha lá, as duas metidas saíram de lá também. Vou voltar! Desta vez vou mais devagar, não estou a fim de ficar suando. Vou-me encostar aqui nesse muro por alguns minutos e tentar me lembrar de como posso voltar para casa! Ai, minha casinha, que saudade!
Será que estou tendo uma miragem? Mas aquele lá não é o encosto? Não, devem ser meus olhos! Aquele idiota não teria esta capacidade de dar-se conta de que eu não estava mais em casa, muito menos tomaria a iniciativa de me procurar. Seria demais para seus curtos e queimados neurônios. Ups! esse buraco quase me ungoliu. Mas não é o encosto mesmo?! Deve estar perdido também. Agora seremos dois e terei muito mais responsabilidade.
- Laura! gritou o encosto.
- Já disse que sou louro, papagaio ridículo!
- Há! Há! Há! Quer dizer que viu a porta da gaiola aberta e achou que poderia ganhar o mundo?
- Cala a boca, encosto! Foste tu quem não aguentou e saiu atrás de mim!
- Deixa de ser metida e convencida! Estou de olho na periquita da vizinha!
- Quê? E tá achando que ela vai te dar bola?
- E por que não? Sou um papagaio elegante e charmoso!
- Olha lá! aquelas duas foram buscar reforço. Estão vindo para cá, acompanhadas! Ai meu Deus, temos de fugir! Vão nos expulsar daqui! E eu não sei voltar para casa! Papagaiozinho! me ajuda!
- Ah é?! Eu vou ter de te salvar? Quem diria?
- Por favor! Desculpa as minhas grosserias, mas eu estava acostumnada a viver sozinha. Aí te trouxeram e colocaram junto comigo, como se eu tivesse de gostar de ti só porque és mais jovem, bonito, penudo, verdoso como nenhum outro papagaio que eu conheço! Ai agora disse tudo! Que vergonha! Mas eu estou apaixonada por ti e não queria me dar conta disso. Ai! Ai! Ai!
- Bonito, né? Escondendo o jogo? Pois bem, eu sou galante, sábio e conquistador, mas odeio papagaiazinha que me escanteia e desdenha. Quer voltar pra casa?
- Ham, ham! Snif, snif!
- Vamos lá! Bate asas e tenta me acompanhar. Não vou nem olhar para trás para saber se estás conseguindo me seguir! Te vira, metidinha!
- Ai, vamos láááááááááááá!


Uma provável conversa entre dois papagaios que surgiram hoje, à tarde, no beiral do edifício vizinho ao meu, provavelmente perdidos, pois a gritaria que faziam era ensurdecedora. As perseguidoras eram as pombas que normalmente estão naquele lugar e, com certeza, se sentem donas do pedaço.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Afiador de facas

Quando me mudei para este apartamento onde moro, um dos acontecimentos que me chamaram atenção foi o apito do afiador de facas e tesouras. Na primeira semana, surpreendi-me com aquele som! Imediatamente, questionei: "Qual a vantagem de ouvi-lo?" É, nem sabia exatamente a que distância estava. Se quisesse usar os seus serviços, conseguiria alcançá-lo a tempo? Até que eu chamasse o elevador, descesse e fosse à rua procurá-lo, provavelmente, já estaria longe! Tive todos esses pensamentos porque, na verdade, a minha faca de cortar carne estava precisando ser afiada.
Hoje, ouvi de novo o som inconfundível. É engraçado como algumas coisas vão se concretando na vida de uma comunidade. Quem teria inventado aquele tipo de apito para identidicar este tipo de trabalho? Por que nunca foi mudado? Estaria aquele homem fazendo o mesmo sucesso que fazia antigamente? Quando estes afiadores morrerem, outros irão surgir? Ou esta é um profissão em extinção, como alguns animais e plantas. O homem inventa e extermina conforme a sua ganância em saber mais, em querer parecer mais com o Criador.
Agora estou me dando conta de que se dependerem de mim, nunca mais essas pessoas terão trabalho. Cada vez que preciso cortar algo, legume ou carne, pego a faca que, como há três anos, continua sem fio e, com a maior altivez, pego o que sobrou de um rebolo - não sei se sabem do que estou falando - que meu pai tinha preso à borda da mesa no terraço dos fundos do sobrado onde morávamos. Aquele pedaço de pedra, faz-me voltar no tempo, faz-me lembrar de minha infância. Só sei que consigo fazer bons cortes a cada afiação. Na próxima vez, tenho de repetir o ritual, mas isto me faz bem.
Engraçado como hoje me satisfaço com essas pequenas coisas: o apito do afiador, o rebolo de meu pai, a faca sem fio!

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Uma rua no meu passado

As rodas de meu carro delizavam pelo asfalto daquela rua. Tudo ali era novo, bonito, limpo e cheirava prosperidade. Na esquina, um suntuoso templo de uma igreja, cuja doutrina não se consegue saber pela fachada. No entanto, os jardins ao redor do palácio, um homem dourado -seria ouro?- em posição que lembra um esportista, mas acho que é uma anjo pois está tocando uma corneta, também de ouro, as portas, as janelas, o globo dourado em cima do qual está o tal anjo, os portões, o estacionamento cheio de carros do ano, tudo denota muita riqueza.
Olhei para a outra esquina e lá estava uma escola pública. Li o nome. Não acreditei. Meu Deus, ali eu iniciara minha vida de professora. Lembro que tinha de andar muito para chegar até ela. Nem vinha pelo mesmo caminho que agora podemos fazer, ruas foram abertas, bairros, aparentemente novos, nasceram. A rua era de chão batido e havia muitas casinhas dos dois lados. Naquele tempo, todas as crianças dos arredores estudavam naquele colégio. Arredores pobres, crianças pobres, casinhas pobres.
Estacionei e, antes de descer do carro, cerrei os olhos para tentar lembrar de alguns detalhes daquela época. Havia muita alegria! Gritaria de criança chegando para estudar, para comer a merenda, para receber o carinho dos professores. Vieram a minha mente diferentes momentos: o dia em que fechamos a rua - ninguém passava lá mesmo - para fazer uma festa ao ar livre, festa à fantasia; o dia em que enchi meu carro com as crianças da sala de especiais e as levei à Expointer; as vezes em que corria a colocar alguma criança que se machucara no carro e a levava a um Pronto Atendimento Médico que atendia nossos alunos, aceitando as carteirinhas do plano de saúde de algum filho de professor. Que fim levaram aquelas crianças? Onde foram parar as suas casinhas? Será que os que lá estudam agora se divertem como os de antigamente, aprendem como antes, recebem o carinho que, naquele momento me dei conta, dávamos a cada um deles, sujo ou limpo, são ou doente, esperto ou "burrinho"? Tudo está tão silencioso agora. Tudo está tão limpo. Tudo está tão organizado. Tudo está tão... frio.
Abri a porta do carro, saí, tranquei bem os vidros e a fechadura, acionei o alarme e fui dar minha aula particular. Mais de trinta anos se passaram, mas aquelas lembranças que haviam adormecido dentro de mim, acordaram e me deram muita alegria!