sábado, 20 de dezembro de 2014

O Natal de Mariazinha

        A noite estava iluminada dentro e fora das casas! Na maioria delas, havia um pinheiro, uma vela, um conjunto de luzinhas piscando e adornando uma janela. E lá no alto, linda e esplendorosa estava ela, a Lua em sua fase mais cobiçada, esperada, misteriosa. Era Natal! O Papai Noel, como em todos os anos, era esperado pelas crianças ansiosamente.
        A mesa estava repleta de gulodices e no centro aquela boleira! Nossa! Como aquele objeto carregava curiosidades. Os adultos pegavam as taças baixas de cristal que a acompanhavam e, com uma concha também de cristal,  enchiam-na com o líquido preparado pelo avô de todos. Sabia-se que ali tinha guaraná, frutas picadas e outras coisas que nós, crianças, não conhecíamos. Por que não podíamos beber? Hoje sabemos.
        A escadaria por onde o velhinho com sacos estourando de tantos brinquedos chegava sempre trazia um misto de medo e alegria. Ao ouvirem a campainha e o "Ho, Ho, Ho", os pequenos percorriam todas as peças da grande casa, gritando quase histericamente. Porém pouco a pouco iam se acomodando à porta, à espera dele. Ele vinha lento, degrau por degrau, ao mesmo tempo que os coraçõezinhos iam se acalmando. Entrava apoiado na conhecida bengala, sentava na velha poltrona ao lado da enorme árvore seguida do grande presépio que ocupava uma parede da sala. Primeiro cantávamos, depois rezávamos e, finalmente, começava a distribuição dos presentes, antecedida das tradicionais perguntas se havíamos nos comportado, passado de ano na escola e outras, que nos intrigavam, pois como ele sabia tudo!
        Mariazinha era a mais velha dos netos. Ia completar quinze anos no mês seguinte. Tornara-se uma bela mocinha, alta, elegante, longos cabelos negros e olhos  expressivos. Esperava sempre ansiosa o presente da madrinha, que a cada ano se superava na escolha. Nunca dera algo que a menina esperasse. Eram presentes surpresas e originais. E a menina jamais se decepcionara. Recebeu alguns pacotes que, ao abrir, identificou como da sua lista. Quando o último saco estava quase vazio, ouviu seu nome. Dirigiu-se lentamente para perto do bom velhinho que começou a fazer-lhe perguntas. Perguntas essas que a deixaram envergonhada. Queria saber se ela tinha namorado, se já havia beijado, se estava se preparando para ser uma boa esposa. Mariazinha não estava preparada para responder a questões desse tipo. Ficou vermelha, abaixou a cabeça e lágrimas quiseram rolar, mas se controlou. Pegou a caixa com um laço de fita de seda e voltou para o seu lugar ao lado do coleguinha de escola que viera passar o Natal com ela.
        Todos começaram a gritar: "Abre, abre!" Ela desatou o tope, abriu a caixa vagarosamente, viu o papel de seda que cobria o inesperado. Segurando a caixa com a mão esquerda, levantou o papel com a direita e, lá dentro, bem dobrado, apareceu algo de tecido. Um tecido fino, plissado  e rosa. O silêncio tomava conta do ambiente. Pegou com a ponta dos dedos trêmulos e sacudiu o que pegara. Era um lindo, transparente e sensual "babydoll"! Ela abaixou a cabeça novamente e correu em direção a um dos quartos com a caixa nos braços. A conversa e a alegria voltou na sala. Entrou fechou a porta, queria ficar sozinha. Sentou na cama e olhou , pensativa e demoradamente, para o presente. Não era mais um brinquedo, não era mais um jogo para divertir-se com os amigos. Ela não era mais criança!


quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

O baú

                Aquele baú sempre fazia barulhos que me deixavam intrigada. Em diferentes horas do dia ou da noite, no frio ou no calor, ele estalava. “Madeira antiga, boa” – diziam -  “É normal!”. E eu repetia essas desculpas quando alguém desprevenido se assustava ao ouvir seus quase gemidos. Está comigo há mais de quarenta anos, mas nem sempre foi meu. Comprei de um casal de colonos, velhos, que já não queriam tantos móveis em casa. Ele ainda enfeita a minha sala.
            Há uns dois anos, decidi guardar algumas roupas que havia comprado num brechó para a montagem de uma peça teatral. Acomodei, delicadamente, sem muitos vincos, as mais pesadas embaixo, as mais leves em cima.  Ficou ótimo, desobstruiu meu armário pessoal. Entre as roupas guardadas havia fraques, camisas com colarinho alto, tiras de seda para fazer os laços masculinos do século XIX, trajes femininos e uma camisola de voal plissado em tom quase areia com seu chambre de mangas longas e soltas. Lindo!
            Na noite passada, a luz se foi e eu passei a caminhar pela casa no escuro, uma de minhas manias. Às vezes até para trás. Dizem que é bom para o cérebro. O calor estava muito forte. Ao passar pela sala, ouvi os estalos do baú. Não dei bola, afinal já estava acostumada. Continuei a perambular e, de  repente, me dei conta de que estava andando no compasso das batidas. Sim. Não eram os ruídos habituais, eram batidas como se alguém quisesse sair de dentro dele. Adentrei a sala e imediatamente o toca disco passou a emitir uma valsa. Dei dois passos para trás, parei no corredor e a valsa parou. Entrei novamente e quando vi eu dançava ao som e ao compasso daquela bela melodia.
Tentei olhar e ver alguma coisa. Virei-me na direção do baú. Nada, só a valsa  que me embalava. Permaneci no delírio, eu não queria parar. Senti, então, mãos quentes e macias percorrendo meu corpo, minha face, meus cabelos. Braços enlaçaram minha cintura de maneira bem firme, um peito forte e másculo amassou docemente meus seios e um aroma de flor do campo tomou conta de mim. Medo nem passava por minha cabeça. O momento era de plena felicidade. Não! Eu não queria que a música parasse, eu não queria me sentir livre, eu não queria que a luz voltasse.
Ela voltou! Clareou a casa toda. Deixou-me ver canto por canto. Permitiu que eu me enxergasse. Eu vestia a camisola e o chambre! O baú continuava fechado como sempre esteve. Não havia mais música. Na minha memória, aquela sensação de ser amada, de ser desejada. Um leve e maroto sorriso alterou o contorno de minha boca! Tomara que falte luz amanhã!

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Plenamente feliz

        Finalmente cheguei à pequena vila em meio às montanhas. Cheguei cansada, mas ainda precisava encontrar o casarão de porta e janela na calçada. Andei mais um pouco e avistei-o. A emoção tomou conta de mim, meu coração começou a bater mais forte. Estaria eu certa? Seria ali mesmo?
        Parei a uns cinco passos, bem à frente dele. meus olhos correram cada centímetro da velha casa, onde um dia serviam chá. Sim, era ali. Porém outra dúvida tomou conta de mim. Estariam elas lá dentro? Elas me reconheceriam? Fazia tanto tempo! Passo a passo aproximei-me da vidraça da porta, encostei a testa e  vislumbrei a sala. Sim, elas moravam ali. Os móveis, as cortinas de voal branco, as flores dentro e fora da casa. as poltronas antigas, os guardanapos de croché, tudo revelava a presença daquelas duas. Recuei um pouco, hesitei, fechei a mão direita, ergui-a e, meio trêmula, dei três leves batidas no límpido vidro. Agora era esperar.
        A primeira a aparecer foi a mais velha. Não havia mudado nada. Eu lembrava cada detalhe de seu rosto, de suas mãos, de seus cabelos. Claro que os anos haviam feito seus registros, mas a essência era a mesma. Quanta alegria foi-me enchendo o peito. Senti como se fosse explodir tal um balão de aniversário. Sim, um balão cheio de lembranças e saudades. Ao abrir a porta, inicialmente, ficou parada, como se não me tivesse reconhecido, como se eu fosse uma ilustre desconhecida que viera importuná-la. Isso fez minhas pernas tremerem, achei que eu fosse perder os sentidos. No entanto, o som das sílabas de meu nome seguido do calor do abraço que recebi acalmaram-me. Continuávamos as mesmas.
        Foi-me conduzindo para dentro como se a última vez que nos víramos tivesse sido no dia anterior. Perguntei pela mais moça. Nada me foi respondido. Apenas caminhávamos de mãos dadas por toda a casa. Tudo era lindo e romântico. Eu estava completamente feliz. Subimos as escadas, meus joelhos doíam. Cruzamos um hall e paramos diante de uma porta aberta. Lá estava ela: a pequena! Sim, continuava a pequena de sempre, com seu rosto alegre e seus olhos vivos. Deu um belo sorriso ao me ver, levantou da poltrona onde bordava junto à janela e veio ao meu encontro. Não disse palavra alguma e me abraçou. Havia nela também os traços dos obstáculos que a vida lhe preparara, porém, também nela, o que sobressaía era o que emanava de seu interior doce e bondoso.
        Voltamos as três para a sala de estar, tomamos um chá, conversamos sobre passado, presente e futuro. Na hora de ir, convidaram-me para ficar. E eu fiquei. Fiquei ali, no casarão de porta e janela na calçada, na pequena vila, com minhas amigas, sendo plenamente feliz!

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Aquela mulher

      Não esqueço aqueles olhos. Olhos que me trazem um misto de tristeza e de ignorância, burrice mesmo. Por onde eu vou, encontro a dona deles. Tenho a ideia até de que me segue. Não, não me segue. Está sempre por ali no mesmo lugar, na mesma quadra, no mesmo bairro. Teve dias que só de pensar naquela presença fiquei com uma raiva tão grande que troquei o caminho a fim de não encontrá-la. Às vezes esta estratégia adiantava, mas na maioria, ela tinha a mesma ideia e acabávamos nos encontrando. Indiscutivelmente eu não gosto dela. Tenho a sensação de que quer sempre me dizer alguma coisa, corrigir-me, alcançar-me com suas pernas cheias de feridas, encostar as suas mãos sujas em mim. É, eu tenho nojo dela.
     Quando passa por mim, não abaixa a cabeça, vem em minha direção como se quisesse entrar em meu corpo, em minha mente. Os olhos, cujos cílios já não existem, não piscam, parecem de uma boneca. Aquelas bonecas de louça, com partes dos braços descascados, sem alguns dedos dos pés e cabelos loiros, encaracolados e grudentos. Que medo eu tenho de que um dia ela venha se encostar em mim. Acho que morreria. Morreria de asco, de vontade de vomitar, de enjoo. O vestido é sempre o mesmo. O tecido de algodão, que fora talvez um belo rosa, tem ares de pele sem vida. Aqui e acolá uma florzinha ainda sobrevive e de seu cabo uma ou outra folhinha verde. Sapatos? Nem pensar.
     Por que ela nunca me abandonou? Por que não saiu atrás de outro alguém? Cresci com a presença dela perambulando por onde eu desfilava elegante e linda. Ela sempre velha e nojenta. Em certas ocasiões cheguei a pensar em falar com ela, no entanto, chegado o momento, fugia! Eu fugia? Ela fugia? Não sei! Não tinha nome, não tinha casa, não tinha família, não tinha nada. Tinha! Tinha eu! Eu! 
     Hoje vou partir. Não sei para onde, não sei com quem, não sei nem a razão. Ali está ela, olhando-me com aqueles olhos de pedinte, de cachorro sem dono. Pergunto se ela também vai? Não. Periga querer ir comigo. Dou-lhes as costas. Embarco. A porta se fecha. Sento à janela. Ela não está lá fora. Olho para o lado, ela vem e, finalmente, vai encaixando parte por parte de seu corpo em mim. Agora somos somente eu. Ela sempre foi eu!

sábado, 6 de setembro de 2014

Quando tudo começa a não funcionar!

        Depois de quarenta dias sem escrever, ela pegou a caneta e começou a esboçar algumas frases. Nada a agradava. nenhuma ideia genial. Porém o que mais a deixava indignada era o traçado de suas letras. Sua caligrafia não era mais a mesma. Em alguns momentos, antes da ponta tocar o papel, sua mão fazia tantas voltinhas que achava não conseguir nunca mais redigir qualquer coisinha.
        Parou, pensou um pouco, pegou um lápis. Sim, com o lápis não teria problemas. Não, não teve os mesmos problemas: o lápis deslizava e entre uma letra e outra, na mesma palavra, uma linha trêmula surgia sem que ela pudesse dominar. Pegava a borracha, apagava tudo e reiniciava. Nada mudava. Devia ser o tipo de papel.
        Achou um caderno antigo. As folhas amareladas lhe deram a esperança de surgir a velha, parelha e bonita caligrafia. Tinha boas lembranças daquele caderno, surgiriam boas histórias. Ledo engano. 
        Em meio àquele desespero, àquela desilusão, àquela  incansável busca, de repente, ouviu: "Vó, tu não usas mais o notebook, não é? Vou levar para a minha casa. Tchau! Volto qualquer dia!"
         "Notebook?"


     

segunda-feira, 28 de julho de 2014

Clara sabia

        Desde que casara e fora morar no grande casarão, isolado entre o mar e as montanhas, Clara jamais voltara à cidade onde nascera, nem mesmo para ir ao funeral de sua mãe. O marido era zelador e empregado da família proprietária e dizia que eles não podiam sair dali, pois os patrões não avisavam quando vinham.
        Clara mantinha o interior da casa na mais perfeita ordem e limpeza, enquanto Ernesto ocupava-se do lado de fora. Grama sempre cortada, caminhos bem varridos, pintura impecável. Dia após dia, mês após mês, ano após ano. No princípio, ela fazia tudo com prazer e amor, afinal, era para o seu amado. Tinha uma curiosidade imensa por conhecer os patrões. Imaginava a senhora, às vezes, magra e elegante, outras, corpulenta e desajeitada. Nunca boa. Sempre implicante, exigente e grosseira. Não entendia por que não a via carinhosa e educada.
        O tempo passava, o silêncio cada vez ficava mais grave e longo entre o casal. No entanto, Clara continuava a viver através das conversas imaginárias que tinha, inclusive, com o patrão. Ele nunca aparecera diferente. Era sempre o mesmo homem alto, com um ventre meio saliente, elegante, bem vestido e muito simpático. Mas o bigode e a barba, esses sim, à medida que o tempo passava, iam ficando mais brancos. Nos devaneios dela, o senhor entrava na cozinha e papeava com ela sobre os mais variados assuntos, contava-lhe das festas, dos teatros e dos livros.
        Um dia, quando Clara já não andava mais tão ligeiro como antes, ouviu seu marido chamar. Ele estava na garagem, fazendo limpeza nas ferramentas; ela no andar de cima do sobrado, trocando os lençóis das tantas camas. O dia estava ensolarado, apesar do frio. Ela desceu as escadas, atravessou a sala de estar, abriu a porta da frente, mais uma vez desceu alguns degraus, cruzou o pátio e entrou na garagem. Ernesto estava lá, estendido no chão, morto.
        Sozinha ela fez uma cova, enterrou o marido, colocou flores sobre ele, rezou e nunca mais voltou àquele canto do imenso terreno. Daquele dia em diante, Clara passou a fazer o serviço dos dois, agora cantando, dançando e conversando com as paredes, com as flores, com o mar, com as montanhas. Tudo permanecia extremamente limpo. Plantava, colhia, cozinhava, comia. Vivia!
        Finalmente, os patrões apareceram. Ele, exatamente, como Clara sempre via. Ela, nem magra nem corpulenta; nem elegante nem desajeitada. Os dois chegaram, cumprimentaram-na cordialmente, A serviçal relatou sobre a morte do marido e os encaminhou para os aposentos na parte de cima da casa. Eles foram para o melhor quarto, o mais iluminado, o mais aconchegante e, para Clara, o mais limpo.
        Clara chegou à sala de jantar e ouviu, ecoando por todo o casarão, uma voz feminina: "Esses lençóis não estão bem passados!"

sábado, 26 de julho de 2014

A busca

        Era uma sala de espera num portão de embarque de um aeroporto. Havia muita gente. O voo estava atrasado. Alguns dormiam mal sentados, agarrados a suas sacolas de mão; outros aproveitavam para fazer um lanche na pequena cafeteria; crianças corriam enquanto seus pais, nervosos, iam atrás; os mais afobados já estavam posicionados na fila, como se houvesse a probabilidade de perder o avião quando ele passasse, lembravam aqueles que, ao fim do dia, aguardam a condução para voltar a seus lares.
      O clima era esse e parecia que não mudaria tão cedo, quando aquele senhor de cabelos brancos, rosto redondo, bermuda verde combinando com a camisa clara, surgiu como uma inesperada criatura em meio aquela loucura. Ele estava e parecia ser calmo, muito calmo. Carregava na mão direita, estranhamente, uma pequena mochila, na verdade, assemelhava-se às frasqueiras que as mocinhas usavam nos anos cinquenta. Procurou uma mesa vaga, puxou uma cadeira, sentou e colocou-a sobre o tampo de fórmica vermelha.
      Se alguém pensou que ele ia chamar um garção, ou buscar algo para tomar, enganou-se. Olhou demoradamente a bolsa de mão, pode-se assim chamar, e iniciou sua tarefa. Havia muitos fechos. O senhor abria um, mexia os dedos dentro do espaço, fechava este e abria outro, do outro lado. Ele procurava algo, com certeza. Virava a bolsa, abria outro fecho, vasculhava cegamente, fechava. Virava para outro lado, abria outro fecho, tateava dentro e fechava. Assim, ele ficou, nessa intensa procura, por alguns minutos. Por último, decidiu abrir o fecho principal, o que dá acesso à parte maior da bolsa. Colocou a mão toda dentro, movimentou-a e a luz se fez em seu semblante.
        A voz feminina vinda do além anunciou o embarque, a fila começou a andar e o senhor não mais foi visto. O que será que ele procurava?

quinta-feira, 10 de julho de 2014

De joelhos! Pra quê?

        "Até quando você vai ficar aí de joelhos?" Essas foram as últimas palavras que ela disse. Pegou seus pertences deu meia volta. Percorreu o corredor sem olhar para trás. Gostaria que fosse diferente, mas qualquer atitude seria inútil. Não dependia dela.
        Cruzou a grande porta de madeira trabalhada e atingiu a rua como se tivesse se atirado num açude de águas tão turvas que não conseguia enxergar além de cada passo que dava. Mas não voltou atrás. Estava determinada. Lembrou de muitos momentos em que estiveram juntos. Alguns deles lhe encheram de ternura e saudade. No entanto, quando lhe vieram à memória as horas de desespero, de incerteza, de medo, sabia que sua decisão estava correta.
        Fora ali, no mesmo lugar de onde saíra, que, há alguns anos, iniciara sua tentativa de ser feliz. Ele chegou perto dela, ela sentiu seu perfume, ele pediu licença, e ela lhe concedeu. Simples assim. E do mesmo modo, aos poucos, seus vestidos foram ficando mais longos, sua unhas não mais recebiam esmaltes, apenas a tesourinha. Suas tardes entra as amigas foram se transformando em poucas horas, depois em minutos, e acabaram. Quando se deu conta ela não mais existia.
        Hoje, na missa, enquanto o padre lia o Evangelho, ela pensou na inutilidade de sua vida, no quão diferente estava do que havia sonhado. Olhou para o homem que ao seu lado rezava, ajoelhado. Não reconheceu nele o que se chegara de maneira tão delicada e tão cheio de ternura. Via agora um algoz, feio, fedido, horrível. A cerimônia religiosa já terminara e, como sempre fazia, ele permaneceu de joelhos, como se tivesse pedindo perdão.
        Os passos dela foram ficando mais rápidos. Não tinha destino. Só sabia que jamais voltaria.

       

segunda-feira, 23 de junho de 2014

Presente de aniversário

        O som do piano me fez chegar mais perto. Som de piano caseiro. Não era um concerto. Era uma visita, entregando seu presente à aniversariante. Nada de pomposo, tudo de especial. O silêncio entre os demais convidados demonstrava o quanto as notas e o ritmo enlevavam a alma de cada um.
        Busquei um lugar de onde pudesse ver as mãos, os pés, a cabeça, enfim todo o movimento que envolve o saber tocar um instrumento. A pianista não era exímia, porém tinha alma e alegria. Não tocava nenhuma peça de Chopin, Shubert ou Bach. Interpretava, sim, interpretava uma série de boleros conhecidos da maioria dos que ali estavam, gente de mais de sessenta.
        Aos poucos fui me envolvendo de tal forma que me senti flutuando, voltando no tempo até chegar à casa onde me criei. Era a sala de visitas, onde, além de poltronas, cortinas, tapete, havia um piano. Um piano de parede, simples, bem conservado e  afinado. Minha mãe estava ali. Era jovem ainda. Seus dedos corriam pelas teclas,  e ela cantava. Era um fado - "Era uma casa portuguesa com certeza...". Eu, nos meus nove anos, juntei-me a ela, e comecei a soltar a voz do jeito que ela gostava. E nós duas seguimos entoando uma série de diferentes melodias. Não só fados,  mas  boleros e  tangos também. Nesse meu devaneio, meu pai chegou de mansinho, pegou seu contrabaixo e passou a nos acompanhar. A música era a alma da nossa família.
         Quando me dei conta, não mais cantava e sentia o peso dos anos sobre mim. Havia voltado à festa. A pianista já havia trocado. Era outra convidada que também fazia sua homenagem, agora não mais com melodias populares, mas com composições eruditas que, depois soube, ela tocava de ouvido. Não menos nem mais belas que as anteriores, que me fizeram sair do ar uns minutos. Era um tocar mais suave, só!
         Tenho certeza de que estes foram os presentes de que a aniversariante mais gostou, além do conjunto da festa oferecida por seu marido e a presença dos convidados. No próximo ano tem mais! Visualizo teu sorriso, amiga!

     

segunda-feira, 16 de junho de 2014

Num trem

Num trem entre
Glasgow e Edinburg
2011
        Quando me dei conta, já não lia mais. Minha visão estava agora nos campos pelos quais passávamos. Via ao longe uma moça a cavalo. Ela se aproximava. Ao passar pela minha janela, vi que ela era eu. Eu de cabelos longos, louros e encaracolados. Meu rosto era lindo e meus olhos brilhavam. Eu era uma princesa! Ia ao encontro do príncipe, príncipe encantado, apaixonado, amado.
        Naquele devaneio de adolescente, eu quase voava em direção ao castelo que via ao longe. Quanto mais perto chegava, maior ele ficava. Quantas torres de tantos diferentes tamanhos! Quantas janelas, umas fechadas! Como é belo esse jardim! Quanto verde! Como é limpo! Comecei a fazer voltas pelas alamedas.
        Porém, quando levantei a cabeça, o gigante prédio havia mudado de cor, de um rosa alaranjado, fora escurecendo e ficando quase marron. Por que o teriam pintado dessa cor.  Não havia mais nenhuma janela aberta! Será que se fecharam para mim? Um temor tomou conta de minha mente, meu coração disparou. O medo veio e me engoliu. Meu cavalo não mais corria. Seus passos agora eram indecisos. O que estaria acontecendo?
        Parei, olhei para o céu e vi nuvens pretas que se juntavam, formando uma espécie de caverna acima de mim. De repente, raios! Muitos raios seguidos de trovões. Era um barulho ensurdecedor. O bicho começou a relinchar e levantar as patas dianteiras. Estava perdida, pensei. Não tinha onde me proteger. E a chuva veio. Veio forte e acompanhada do vento. Mas em meio a este tumulto, surgiu ele, o meu príncipe. Pegou as rédeas do meu cavalo e me levou para um lugar seguro. Lá me abraçou, e eu chorei, não sei se de alegria ou de saber que toda a insegurança havia passado.
        "Rose, Rose!"
        Era minha mãe, avisando que havíamos chegado. Dei-me conta de que tinha a sacola da loja, onde havíamos feito umas compras e que antes estava sobre a mesa entre os bancos, apertada em meus braços. Soltei-a rapidamente e, num relance, vi meus cabelos curtos castanhos refletindo na vidraça da janela do trem.

sexta-feira, 13 de junho de 2014

Pensamentos de um ator

Montmart, Paris - 2011
         "Você sempre foi um bom homem." Imagina, como se esse parecer fosse me ajudar. Iríamos subir as ruas de Montmarte até a Catedral de Sacre Couer.  Não gostei quando o diretor do grupo me deu um figurino feminino rosa. Não me importava de vestir-me de mulher, afinal sou um ator. Mas justo hoje, não!
        A discussão que tive com minha companheira, a Eve, ontem à noite não me fizera bem.  Ela não entendia o quão diferente é a cabeça, são as atividades, os horários de um ator, ainda mais ator da rua como eu. Queria que fôssemos almoçar no pequeno restaurante de seu pai, perto da Catedral de Notre Dame. É difícil , aceitar que tenho de pegar o que aparece, nem interessando o dia e a hora.
        Já para mim é incompreensível a rotina em que vive. Dia após dia, à mesma hora, o mesmo trem, a mesma empresa, o mesmo chefe, o mesmo trabalho. Jamais teria um emprego assim. Tenho de me sentir livre, apesar das desvantagens.  Tenho de ter manhãs em que posso optar se saio ou não da cama. Comer quando tenho fome. Fazer o que é gratificante para mim.
        Aos domingos, o público é certo. Sempre tem alguém pelas praças. Hoje, aqui neste lugar, então, o sucesso é inevitável. Porém não estou me sentindo bem. Essa roupa feminina não combina com meu estado de espírito.  E estou arrependido. Arrependido de ter contado para este idiota que sentou a meu lado detalhes de minha vida particular. Qual é a dele? Dizer que sempre fui um homem bom é não ter o que dizer! Nem me conhece tanto assim para saber se sou bom ou não. É melhor ficar calado do que falar sem fundamento.

sexta-feira, 6 de junho de 2014

Um pequeno conto brasileiro

São Luís do Maranhão
        Todos os dias Raimundo, no final da tarde, mesmo cansado do dia inteiro de trabalho, vinha buscar sua namorada que trabalhava no Cantinho do Artesanato. Ali ela era atendente. vendia desde pequenos objetos de decoração até vestidos e camisas.
        Ele era um rapaz simples, trabalhador, quieto, quase envergonhado, podia-se dizer. Não era de muitas palavras. Fora criado por seus padrinhos, já que os pais ficaram na roça. Ali, na cidade conheceu Ruth e por ela se apaixonou. Nunca mais olhou para moça alguma. Estava focado no seu futuro: casar e ter filhos com ela. A moreninha baixinha, espevitada, de pernas finas, lábios grossos e cabelos longos havia preenchido o coração dele.
        Ela morava na periferia, porém sempre buscou serviço no centro. Não gostava das coisas simples. Achava que tinha direito a mais, muito mais. Conversava com os clientes da loja, a maioria turista e encantava-se com o que via, ouvia. Quando aparecia um estrangeiro, e isso era bem comum, ela tentava comunicar-se com o pouco Inglês que tinha. E sonhava. Seus olhos brilhavam, remexiam-se , olhando para o infinito em momentos só dela. O patrão, às vezes, tinha de acordá-la de seus devaneios para fazê-la voltar ao trabalho. À tardinha, quando o sol se punha, e a rua ficava dourada, ela saía e encontrava Raimundo, que atravessava a rua e colocava Ruth embaixo do braço direito. Era assim que ele gostava, e ela apreciava o carinho dele. Ele ia falando sobre o terreno que vira, sobre quando iniciar a construção da casinha, como conseguir um empréstimo. Ela ouvia tudo sem contestar, só sorria.
        Naquele dia de outubro, o rapaz fez o que sempre fazia. Encostou-se à parede da casa em frente ao Cantinho do Artesanato, e ali ficou. Ficou por bastante tempo, mais do que o normal. A noite chegou e o abraçou como se previsse a tristeza que iria tomar conta dele. Mesmo recheado de timidez, ele criou coragem e, passo a passo, foi lentamente atravessando a rua. Alcançou a calçada, visualizou o patrão da amada. O homem recolhia as mercadorias  expostas, guardava tudo, fechava a loja. Raimundo criou coragem e, sem levantar a cabeça, perguntou por Ruth.
        "Ruth? Não sabe? Foi-se hoje com um alemão que apareceu aqui na semana passada e que caiu de amores por ela!"
     

domingo, 25 de maio de 2014

Constatação

        Acordou com vontade de abraçar alguém. Sentir o calor do peito alheio aquecendo o seu. Ter um outro coração batendo dentro de si. Lembrou dos cheiros que fazem parte desse gesto. Cada um de um tipo, todos inconfundíveis, indescritíveis e inesquecíveis! Dos olhares trocados entre um e outro.
        Foi, então, que veio à memória o cheiro do cãozinho da infância. Sempre limpinho, e não havia pet shops! O calor do corpo peludo, cor de mel, roçando nas pernas jovens e fortes, estava impregnado em sua pele, agora notara. Quantas vezes o mandou sair de perto, outros interesses a chamavam. O olhar de pedinte que vinha a seguir, na época, não a sensibilizava. Porém, mais tarde, muito mais tarde, quando ele não mais existia, reconheceu aquele olhar. Sim, os velhos que encontrava andando pela rua sozinhos tinham o mesmo olhar.
        Seus pensamentos não paravam, sempre focando em lembranças saudosas. Era inverno. Deve ter sido a temperatura que a fez visualizar, lá num dia de sua adolescência, a gata. Não a conhecia, não era dela, nunca a vira. Veio lenta e sensual, subiu no sofá, enroscou-se na lã do tricô e dengosamente se instalou, sem olhar nos olhos. Outro calor se cravou.  Aquele felino não mais a abandonou até o dia, ou a noite, não tinha clara esta parte, em que sumiu. Desapareceu, levando os filhotes a que havia dado luz no quartinho dos fundos da casa. Sumiu ou sumiram com eles?
        Os abraços dos namorados!  Vinham-lhe agora. Saudade? Não sabia dizer. Mas eles também estavam nela. Quem? Os abraços ou os namorados? Ambos! Veio-lhe à mente alguns olhares! Fazia tempo que não tinha um namorado! Costumava dizer, às gargalhadas, que havia sublimado todo e qualquer desejo. Por que o riso? Também não sabia justificar. Ainda bem que riam com ela e nunca lhe perguntavam.
        Levantou da cadeira onde passava a maior parte dos dias, caminhou lenta e sacrificadamente na direção do quarto. Fazer o que lá? Não sabia. Movimentar-se um pouco. Aquela cadeira já era parecida com ela. Queria se livrar um pouco dessa convivência. Ao passar pelo banheiro decidiu entrar, sem ter necessidade. Entrou e deu de cara com aquele olhar. Sim, via no grande espelho, o olhar de pedinte do seu cãozinho, o olhar dos velhos, o seu olhar.
   
     
     


sábado, 5 de abril de 2014

Uma pequena história contemporânea de amor

     As malas foram sendo colocadas, uma a uma, para fora do apartamento. O velho senhor acompanhava com olhar neutro cada gesto da esposa. Algumas caixas também faziam parte daquela mudança. Ela sabia que nem tudo poderia ser levado. Sabia que havia coisas, sentimentos, emoções que pertenciam àquele lugar.
     Foi num dia muito frio que o sim fora dito depois de alguns anos e de muitas emoções. Tinham se conhecido por acaso, em meio a outros jovens no centro da cidadezinha, onde ele chegara transferido pela empresa de que era funcionário. Tinham sonhos diferentes, porém valores e garra semelhantes para enfrentar o futuro. Juntaram tudo e começaram uma vida.
     Os filhos nasceram, as alegrias tomaram conta assim como as preocupações. Os gastos aumentaram, o tempo deles encolheu, os sonhos se dissiparam, as mágoas e decepções foram sujando a relação outrora perfeita. De perfeita passou  a suportável, de suportável a intragável, de intragável a indiferente. E aí é que tudo desmoronou.
     Os espaços de silêncio, a falta de informações, os olhares não trocados iam cobrindo a vida deles. Ah, quanta palavra não dita, quanta troca de ideias não acontecida, quantos carinhos não mais dados e recebidos. Tudo virara um marasmo mudo, surdo, sem cor entre os dois. Passaram a viver as vidas dos filhos. Os desejos, as felicidades, as tristezas, as injustiças, as conquistas, tudo, tudo não mais fazia parte daquela histórias de dois seres.
     Hoje o último filho está saindo de casa. Suas bagagens e ele estão fazendo daquela casa um vazio enorme. Um vazio talvez nunca mais preenchido. Os olhos da mãe e do pai acompanharam tudo no silêncio tão exercitado por eles nas últimas décadas. A porta do elevador se fechou, e lentamente a cabeça de cada um foi se erguendo até que seus olhos voltaram a se ver, suas bocas esboçaram um sorriso, seus corpos se abraçaram como nos velhos tempos. 

segunda-feira, 31 de março de 2014

Uma viagem!

     Escolhi um acento no corredor. Dali, deitando um pouco a cabeça, poderia ver, mesmo que ao longe, a estrada lá à frente. Também poderia levantar sem incomodar ninguém quando estivesse cansada de estar sentada. Na dor dos joelhos, esticaria as pernas em diagonal entre os bancos. O trajeto era conhecido, não precisava estar à janelinha, como as pessoas falavam. Lembro que minha mãe, quando viajava, sempre dizia que preferia ir à janelinha! Janelinha! É, eram bem menores do que as de casa.
     Perto da hora do embarque eu já estava a postos, tinha pressa, queria chegar ao meu destino. À minha frente, na fila para embarcar no ônibus, uma pequena mulher, magrinha, risonha, sim, sempre rindo, aquele riso  que as pessoas envergonhadas expõem. Não tinha a maioria dos dentes. Enrugada, muito enrugada, cabelos em desalinho, mas presos. A aparência era de que não recebiam muita água e xampu. Xampu? Imagina! Pediu auxílio ao motorista que fiscalizava as passagens. Não ouvi, ela falava baixinho e rindo. A timidez era enorme. Dentro do ônibus,  notei que estava perdida. Cheguei nela  e perguntei se precisava de ajuda. E ela me confessou quase num sussurro, porém sempre com o sorriso desdentado, que não sabia ler. Mostrei-lhe o seu lugar e fui procurar o meu.
     Sentei-me, ajeitei o pequeno travesseiro, que sempre me acompanha, na região da lombar, enchi de ar a almofadinha em forma de ferradura, coloquei-a no pescoço, tirei os óculos escuros, guardei na pochete que trazia colocada no ombro e atravessada no peito, certifiquei-me de que estava bem fechada, fechei os olhos e pronto: podíamos partir, tudo estava no seu lugar!
     Isso era o que eu pensava. Para começo de conversa, a senhora, na janelinha, ao meu lado, resolveu puxar conversa comigo. Aqueles assuntos interessantíssimos e inusitados, tipo, clima, velocidade, paradas do ônibus. Epa! Eu não estava numa viagem direta? Não, não estava! Em poucos minutos teríamos uma parada numa pequena cidade, Santa Rosa, não à beira da rodovia, à direita, uns dez quilômetros para dentro. Tudo bem. Lá entrariam alguns, desceriam outros. Bem informada a minha companheira. Difícil era entender o que ela dizia. O sotaque não era meu conhecido, havia mais vogais do que o normal nas palavras, quase sempre um "u". Ela desembarcaria, não na primeira, mas na segunda parada. Meu Deus, teria mais uma parada. Tudo bem, quando ela descesse, eu tomaria conta do espaço.
     No banco exatamente à frente do nosso, estavam sentados um rapaz e uma senhora, acho. Pelo menos as vozes deles me davam essa informação. Ele respondia, concordava, sempre com poucas palavras, para não dizer com meias palavras. Ela falava muito, e a sensação que eu tive, através das frases que chegavam aos meus ouvidos, é que ela tentava convencê-lo a seguir uma religião, um método, uma terapia, da qual ela era seguidora e dava garantias de que tudo mudaria para ele se a ouvisse. É claro que não desliguei.
     Já tínhamos passado da primeira parada e chegado à cidadezinha onde minha companheira me deu adeus e sumiu em meio à poeira que subiu por causa dos pneus no chão batido. Tudo iria melhorar, pensei. Acomodei-me à janela, fiz todo o ritual para proteger a cervical, a lombar, enfim todos os acompanhamentos da tal da velhice. Abri a cortina de pano grosso e uma felicidade tomou conta do meu ser pela maravilha de paisagem que era possível apreciar. Suspirei fundo e senti um pontapé nas costas. Era a menina sentada atrás de mim que insistia em desobedecer sua mãe que a mandava não colocar os pés no banco da frente, o meu. 
     


quarta-feira, 26 de março de 2014

O vizinho do décimo quarto andar

     A campainha tocou, era o rapaz do décimo quarto andar. Por que viera até mim? Poucas vezes nos encontráramos. Mal e mal nos olhávamos, só fazíamos um movimento com a cabeça, como se disséssemos "Ok, te cumprimentei!" Morador do prédio há alguns anos, vinha preparando aos poucos o apartamento para quando casasse.
     Nunca alguém vira a namorada ou noiva. Os comentários eram de que ela morava no interior. Ele, ao interior, nunca fora. Estava sempre batendo aqui, furando ali. Não tinha pressa, tinha obsessão pela perfeição, era o que diziam. Nunca estava satisfeito. Trocava a cor das paredes a cada ano. A cozinha reformara mais de duas vezes, assim que via novidades. O colchão da cama de casal também já trocara, dizia que não duravam como falavam nas propagandas.
     Fazia muitas compras no supermercado, parecia que morava com muitas pessoas, como se precisasse alimentar um batalhão. Jornais, assinava todos da cidade, não colocava fora nenhum. Quase que semanalmente entregavam algum produto comprado desses sites que anunciam promoções. Tinha umas três bicicletas, jamais fora visto pedalando. A tele-entrega da farmácia diariamente trazia-lhe encomendas
     Era realmente estranho o rapaz do décimo quarto andar. Se algum vizinho, o zelador ou o síndico batesse à porta dele, não tinha a delicadeza de convidá-los a entrar. Ninguém sabia o que existia além da porta, agora de ferro, mas já fora de madeira. Só o que passava pela portaria era conhecido. E passava muita coisa, como passava!
      De repente, quem deixou de passar pela porta, pelos corredores, pela portaria foi o rapaz, não mais tão rapaz assim, muitos anos haviam transcorrido. Nada mais chegava para ele, nada mais lhe era entregue. Os conhecidos do edifício preocupados decidiram arrombar o apartamento. Ele poderia ter tido um mal súbito. Mal conseguiram abrir a porta, caixas tiveram de ser empurradas para que pudessem entrar. Lá existia tudo o que se pudesse imaginar. Tudo empilhado, amontoado, empoeirado.
     Agora, ele está aqui, frente a minha porta. Através do olho mágico vejo sua impaciência. Está com ar cansado. Por onde terá andado. Continua só. Abro ou não abro?

sábado, 15 de março de 2014

Conversa com o vento











Oh vento que hoje me leva
sem me dizer para onde
Nem tempo tenho de ver a bela
que de mim se esconde.

Sou uma pobre folha seca,
estou parece no último ato,
perdendo a doce  beleza
do meu saudoso plátano.

Por que me levas assim tão forte?
Por que não me deixas ir pro norte?
Por que queres me levar à morte?

Pro norte está a vida
Minha origem partida!
Agora, vento, me sinto perdida!

(Soneto inspirado numa foto da minha amiga Elaine Blank)



quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

O que vale

     Em meio ao silêncio da noite, ouviam-se as batidas de um sapatos de saltos, parecendo dar ritmo a uma cadência nervosa, dramática. Entre elas o bater sincopado e leve de calçados pequenos, infantis. Estes corriam mais do que aqueles, mas percorriam a mesma distância. Eram a menina de tranças e sua mãe.
     A festa de casamento estava linda. Os noivos dançavam ao som da pequena orquestra com músicos amadores, amigos. A maioria dos convidados se empanturravam com as delícias salgadas e doces. Havia muita bebida, bebida boa e variada. A diversão transcorria solta e sem preocupações. Não havia celulares na época, as notícias, boas ou ruins, demoravam mais a chegar. Aproveitava-se mais serenamente os momentos.
     De repente um homem, uma chamada ao canto, um desespero, um procurar a filha, um descer as escadarias do clube, um ganhar a rua e correr. Era quase meia-noite. Não havia ninguém pelas calçadas, as casas pareciam dormir. De tempos em tempos o chão clareava iluminado pelas luminárias. Às vezes, o espaço entre um clarão e outro tornava-se mais longo. O zelador dos postes havia esquecido de trocar alguma lâmpada queimada. As luzes falhavam, porém as passadas, não. Tinham pressa, tinham ansiedade, tinham... horror.  Tinham de alcançar a próxima transversal, haviam percorrido quatro quarteirões e meio. Faltava pouco.
     Chegaram, viraram à esquerda e entraram na rua da casa da avó. Tudo ficou muito claro. Parecia que se fizera dia. Um calor inesperado tomou conta das duas. Foram diminuindo o ritmo e, aos poucos o correr ansioso foi se transformando no caminhar pesado indeciso, medroso. 
     Havia muita gente. Da casinha de madeira em cujo jardim a menina gostava de brincar, nada mais sobrava. Enquanto a cabeça da mãe virava-se para todos os lados à procura da sua mãe, a menina, depois de soltar-se das mãos maternas corria por entre mulheres, crianças, homens, bombeiros, vizinhos, atrás da sua avó. Não demorou muito, encontrou-a sentada numa cadeira cedida por um dos moradores dos arredores. Ela estava sorridente, feliz, viva!

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Saber viver

     Aos poucos ele começou a se dar conta de que não enxergava mais como nos tempos de jovem. Precisava de óculos para ler de perto, para dirigir ainda estava tudo bem. Um tempo depois, ao revalidar a carteira de motorista, foi surpreendido com a reprovação no exame de olhos. Não enxergava bem de longe. À medida que os anos passavam o grau das lentes aumentava, tanto para perto quanto para longe.
      Um dia, começou a abanar, de vez em quando, na frente do rosto. Via mosquinhas. Ninguém as via. Começou a acostumar-se com as manchas negras nos olhos. Não saía mais de casa, mas andava por todos os aposentos tranquilamente, conhecia todos os pequenos cantos, todas as voltinhas que tinha de dar para não se chocar com nada. Quantos passos da porta até o vaso, depois dois à esquerda até a pia. Nada o incomodava, estava feliz e se achando esperto, driblando as carências da vida.
     Para não ter muito trabalho, tinha o hábito de usar o mesmo copo, a mesma xícara o dia todo. Os pratos não. Usava quantos fossem precisos. Tomava cafezinho várias vezes ao dia. Terminava um bule que fazia pela manhã. A partir das seis horas da tarde não mais o bebia, não porque havia terminado, mas por perder o sono. Como sabia que eram seis horas? Claro, ele não enxergava mais os ponteiros do relógio, aliás o relógio de pulso dormia numa das gavetas da cômoda no seu quarto. Sua vida agora era cronometrada pelos programas da televisão que ficava ligada da manhã à noite. Seu organismo lhe avisava quando devia sair da cama ao amanhecer. Desse momento em diante, vivia com os ouvidos atentos a tudo que passava na televisão.
    Num domingo de verão, um de seus filhos veio visitá-lo. Eram umas três horas quando ele chegou. Viera sozinho, deixara a esposa na casa da sogra. Depois do casamento aceitara um posição numa empresa em outro estado. Via o pai poucas vezes. Sabia da sua dificuldade de visão, porém o pai disfarçava muito bem, não queria preocupar ninguém.
     Depois de trocarem algumas poucas frases, o pai ofereceu um café ao filho. Este fez questão de ir à cozinha com o progenitor que fez tudo como se tivesse vendo claramente. Passou café novo, pegou os biscoitos, tirou uma xícara do armário e colocou tudo sobre a mesa, inclusive a própria xícara, a do dia. O filho sentou-se à mesa, e o pai trouxe o café recém passado, exalando o perfume conhecido da casa. Quando foi servir-se, o filho gritou:
     - Pai, a mesa e a tua xícara estão repletas de formigas!
     - E daí? Formiga faz bem para os olhos!


   

domingo, 26 de janeiro de 2014

A vista dela!

     Todos os dias, em algum momento, ela abria as portas da sacada da frente de seu apartamento, descia o enganador degrau -  sim de tão baixinho, ele enganava os menos avisados que, algumas vezes, torciam um pé, mas ela não. Descia como uma rainha, observava atenta e carinhosamente a vista que dali tinha. Ela gostava, gostava muito. Respirava fundo enquanto ali se deixava energizar pelas nuvens, pelo céu, pelo sol, pelos pássaros, pelas copas das árvores.
      Porém era à noite, quando não mais distinguia o céu das nuvens, os pássaros das copas das árvores.  que o seu coração batia mais forte. Naqueles momentos quase obscuros, sua alma se iluminava com a luz que vinha das diferentes janelas dos prédios vizinhos. Olhava à direita e lá estava imponente aquele prédio que mais parecia um caixote amarelo. Primeiro era a cobertura dele que se iluminava, parecia que nunca apagavam a luz. Raramente avistava alguém ali. Por que, então tanta luz? Virava o rosto para a esquerda e deparava-se com o vizinho  do quinto andar do edifício branco , que a cada entardecer lavava suas roupas, cuecas, meias, camisetas e até um par de tênis branco era higienizado. Abaixava a cabeça e tentava ver alguma coisa por entre as copas das árvores das casas antigas da rua detrás. Lá, em um dos sobrados funcionava um Centro de Umbanda e, três vezes por semana, nossa amiga, quase entrava em transe ao som do batuque que subia até o seu apartamento. Sentia-se uma espécie de zeladora daquilo tudo. Sentia-se poderosa. E à medida que o céu escurecia, mais luzes se acendiam, e ela ia ficando mais excitada.  Dentro das janelas, vez ou outra, vislumbrava o caminhar agitado  da donzela  inquieta, que provavelmente aguardava o amado, amado nunca visto, vai ver nem existia. Avistava ao longe, mas claramente as grossas coxas do rapagão que encontrava diariamente na padaria, às nove da manhã, tomando um cafezinho e vestindo um terno preto. Sempre pensava nas pernas que ela bem conhecia e que estavam cobertas pelas calças. Imagina se ele descobrisse. Ela morreria de vergonha. Em certas ocasiões, ouvia o choro ainda sôfrego de algum recém nascido. Quem teria tido a bênção de ter um bebê em casa? E as crianças do prédio da rua ao lado? Acho que faziam aniversário mais de uma vez por ano, pois não havia final de semana sem festa e como gritavam. Nunca conseguiu entender por que cantavam tantas vezes o tal de "Parabéns" , seguido de muitos gritos, sim, porque criança grita! Por quê?
      Hoje não foi diferente. Abriu a porta da sacada, desceu elegantemente o degrau e sorriu, sorriu imaginando tudo o que sempre vira, sabia até quanto tempo cada ação demorava. Os anos haviam passado, e ela não mais tinha a visão boa como no tempos de jovem, mas tinha uma impecável memória, e esta fazia colorida sua vida! Era feliz porque tinha o que lembrar.



quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

O morredouro

        Era uma, duas, três, mais, muitas mais, todas as noites. Começavam a chegar à tardinha. Entravam pelas janelas, pelas frestas, por onde passassem os seus corpinhos delicados. Vinham como se estivessem estado em uma animada festa, onde muita bebida fora servida. E elas beberam, beberam, muito. Todas, todas sem exceção invadiam a minha sala como se a elas pertencesse. Andavam de um lado para o outro sem ao menos respeitarem a minha presença. Iam de um canto a outro, cambaleando, às vezes pelo chão, outras  pelo ar, rodeavam as lâmpadas, faziam um ruído que dava medo.
        Medo! Sim, é essa a sensação que a maioria das pessoas têm ao vê-las por perto. Eu não, desde pequena, tínhamos um bom relacionamento, o que surpreendia muita gente. Eu gostava de falar com elas, de dizer o que deviam fazer, de afastá-las, principalmente, das crianças, que se assustam à aproximação de, mesmo que seja, uma representante apenas. Nunca consegui passar esse dom, é, acho que é um dom, nem para meus filhos, nem, mais tarde, para meus netos. Estes ficavam encantados, contavam para os coleguinhas de escola. Achavam um grande feito da avó.
        Mas essa invasão e seu resultado estava me deixando intrigada. Outra noite, decidi colocar os olhos em uma delas e acompanhar toda a sua aventura em minha sala a fim de entender o que acontecia para que chegassem ao que chegavam no dia seguinte.
        No início, quase fiquei tonta de tantas voltinhas que ela dava, parecia realmente estar embriagada. Porém aos poucos seus voos foram ficando mais baixos até alcançar o parquê, o parquê e o tapete. Andava de um lado para o outro, fazia curvas, voltinhas de 360 graus, com certeza, para ela meu chão era o deserto de Saara, tamanha as distâncias que percorria e percorria e voltava e voltava e fazia curvas e curvas. Às vezes a perdia de vista, ela transitava por espaços escuros, embaixo de móveis, mas logo aparecia, ligeirinha, tonta, bêbada. Já estava cansada de acompanhá-la, passava pela minha cabeça deixar tudo de lado, no entanto precisava descobrir o mistério. Aos poucos ela foi percorrendo espaços menores, até se estabelecer num terreno branco do tapete. Mas parar, ela não parava, rodava em cima de si mesmo, debatia-se.  Sua vida se terminou entre duas flores vermelhas do tapete, como provavelmente passara toda a sua existência. Foi aí que me dei conta de que algo muito sério estava sendo feito para aquelas abelhas. Ao ver a pobrezinha que eu acompanhava tremer as asinhas, sacudir  com esforço o rabinho - se é que abelhas têm rabo, não sei como se chama a parte de trás, normalmente, pretinha, onde elas têm  o veneno - ao vê-la lutar desesperadamente, dei-me conta de que elas estavam sofrendo alguma ação de crueldade, elas estavam sendo envenenadas, elas lutavam pela vida. E eu chorei, chorei pelo sofrimento delas.
        No dia seguinte, conversando com uma pessoa do bairro, fiquei sabendo que tem gente colocando veneno em colmeias de abelhas. Pode? Continuo, dia após dia, pela manhã a juntar seus corpos secos. Minha sala virou morredouro de abelhas. Que triste!


domingo, 19 de janeiro de 2014

O meu nome

Ontem todos me queriam! Dos bebês que a mim vinham, mesmo engatinhando, aos idosos. Quantas bolinhas e, até, bolas maiores, de vôlei ou de futebol, acabavam batendo em mim, mas eu não me importava, sabia que estavam brincando, sabia que estavam se divertindo. Ah, como é bom ter uma boa aparência, estar calmo, e o dia propiciar que eu brilhe, que eu refresque aqueles que por mim passam e que apreciem meus movimentos. Quanta gente havia ontem! Quanta gente trazendo seus amores, suas crias, seus sonhos para junto de minhas carícias, para junto de meu frescor, para junto de minha alegria. Sim,  ontem eu transmitia alegria! Dava alegria, alegria pura e incondicional. Nada pedia em troca. E eu era feliz!
Hoje ninguém me procura! Por quê? Onde está o vai-e-vem das crianças, tentando tirar de mim o meu melhor? Onde se escondeu aquele que tanta luz me dá e me embeleza? Onde está o colorido que tanta felicidade dá aos meus olhos? Onde está aquela velhinha que sempre coloca sua cadeira perto de mim e nela senta por horas, muitas vezes, deixando transparecer um leve sorriso, com certeza, provocado pelas lembranças que eu acabo fazendo voltar a sua mente talvez já meio fraca. Ela não sabe, mas me faz feliz! Por que as moças que me levam, ao abraçar seus corpos quase nus, a  sentir-me  jovem não vêm agora? Hoje estou triste. Hoje pareço feio.
Será que as pessoas que tanto me amam num dia, ou mesmo, por alguns dias, só porque agora meu visual está diferente desistem de estar por aqui, no meu lugar? Eu não posso ir até elas. Eu não consigo ir além dos meus limites e, quando tento isso, sou mal interpretado, acham que estou revoltado, que estou embriagado. Realmente, às vezes, exagero, fico meio sem jeito e não consigo me controlar. Acabo fazendo mal a quem tanto amo. Amo, amor, amar, mar, o mar! É isso, meu nome é do gênero masculino, o mar, juntando fica também um nome de homem, Omar e não expressa o meu verdadeiro sentimento. Ah, como eu queria que meu nome representasse toda a minha emoção, que o meu nome mostrasse o sentido das minhas ações. Queria ser do gênero feminino, a mar. Com certeza, não me interpretariam mal pois, ao falarem, diriam AMAR!


(Texto escrito no dia 03 de janeiro de 2014, à vista do mar, num dia nublado.)

Lembranças à janela

         A aproximação da janela por causa do intenso calor, as grades de ferro que a impediam de colocar o rosto para fora, a fez voltar no tempo. E ela se viu andando no carro novo de seu pai. Era um Ford 51, lindo, azul, de molejo tão suave que sua mãe tinha enjoos cada vez que saíam para dar uma “voltinha” como ele dizia. Quando nascera, nossa protagonista já fora da maternidade para casa no “auto” da família. E desde muito pequena andavam pelas ruas da cidade, devagar, curtindo a paisagem, bem diferente da de hoje. Passavam pelo cais! Como a menina gostava de passar ali. Adorava ver os marinheiros vindos de diversas partes do mundo. Àquele tempo, o porto era importante e muito movimentado. A menina abanava para os rapazes que saíam dos navios e era retribuída. Isso a deixava excitada, o uniforme deles a fascinava.
         Depois do porto, bem numa ponta de terra contornada pelo rio, estava o grande prédio  com janelas pequenas, janelas com grades de ferro, janelas por onde os homens que ali estavam tinham uma pequena visão do movimento da cidade, dos carros, dos bondes, das carroças que passavam e dela, da nossa menina que, depois de abanar efusivamente para os marinheiros, abanava do mesmo jeito para os presos, os bandidos, os ladrões, os assassinos, que lhe correspondiam, amontoados nos pequenos espaços de luz, muitas vezes, mais alegremente do que os uniformizados. Com certeza, era uma forma de se sentirem participando de tudo, da vida.
         Na inocência de sua infância, a menina não fazia diferença entre eles. Do que ela gostava era da farra de se comunicar com todos. Estranhava que uns andavam pelas ruas, em grupos, conversando se divertindo e outros estavam trancafiados naquele edifício enorme, velho e não muito bem cuidado. Mas seu pai, durante esses passeios, ia explicando à garota as razões das diferenças e com isso ia passando valores para ela.
         Chamaram-na, e ela acordou das lembranças que a estavam emocionando. Sentia tanta falta daquela época em que, quando tinha uma pergunta, tinha um pai que lhe respondia, dava explicações, justificativas. Sentiu saudade do cheiro que aflorava ao passarem pelo porto. Lembrou, sorrindo, o carro deslizando meio de lado quando os pneus trafegavam sobre os trilhos dos bondes. Ouviu o apito dos guardas que faziam o seu vai-e-vem constante e também abanavam disfarçadamente para ela e, até, esboçavam um pequeno sorriso.
         — Senhora, o seu ingresso.
         Nossa menina, hoje uma senhora, afastou-se da janela gradeada, ainda suando. Não sabia se o suor era do calor que não diminuíra ou se das emoções que tivera ali. Entregou o ingresso, sentou-se numa das poucas cadeiras e se deu conta de que ali, onde agora atores encenavam uma peça de teatro, talvez outros seres humanos tenham sofrido, apanhado, passado fome, calor, frio, justa ou injustamente. Sentiu um arrepio pelo corpo todo!


(Texto escrito no dia 03 de janeiro de 2014, em Capão da Canoa)

As pequenas manias



         O verão ainda não havia iniciado oficialmente, no entanto a temperatura já castigava os moradores da cidade a partir das primeiras horas da manhã. Pedro e Laura haviam se mudado para esse apartamento porque ficava mais próximo da empresa onde ele trabalhava. Para Laura não fazia diferença onde morassem pois trabalhava em casa, via internet. Porém o prédio não tinha a melhor posição solar, pegava sol a tarde toda.
         Eram sete e quarenta e cinco da manhã de uma segunda-feira. Pedro estava na cozinha fazendo o seu desjejum para sair para a produtora, onde era compositor, quando Laura chega. Ela não dá um sorriso, não diz bom-dia. Para, estática à porta da sala para a cozinha. Veste apenas uma camisola de cambraia bem fininha, através da qual se consegue deslumbrar as curvas bem delineadas do corpo dela. Seus ombros largos sustentam os braços alvos cruzados sob o busto. Seu rosto jovem e lindo carrega agora traços de fúria, de quem não concorda com o que vê, de quem não está acreditando no que acontece.
         Pedro repara na presença da esposa, estranha seu comportamento e tenta fazer com que ela diga por que afinal está tão indignada àquela hora da manhã, mesmo antes de trocarem o bom dia que sempre vem regado com muitas carícias e juras de amor.
         Mas o que se pode saber sobre o pensamento feminino? Como descobrir em que instante fazemos algo que possa transformar a magia dos cafés das manhãs em segundos de tensão, de insegurança, de desatino? Difícil, quase impossível poder prever tal situação. E era nesse mar de incertezas que Pedro estava mergulhado. O que foi agora? O que está acontecendo? O que eu fiz de errado? E imerso nessa tortura, ele ouviu a voz que tantas vezes lhe declarara amor eterno.
         ─ Eu não acredito, Pedro!
         Diante dessas palavras, o rapaz ficou mais estupefato. Ela não acreditava em quê? Do que ela estava falando? Há pouco mais de meia hora ele escorregara para fora dos lençóis que testemunharam delícias infindáveis de amor. Deslizara da cama de maneira quase imperceptível a fim de que ela, Laura, continuasse o seu sono. Lembra que parou em pé, ao lado do leito, olhando-a em silêncio. Como ele gostava de observá-la assim, dormindo, calma. Ela, o anjo da vida dele. Ele tinha certeza de que não fizera qualquer coisa que a pudesse deixar tão braba. Estaria chateada por ele não ter levado o café para ela na cama? Mas Laura sabia que nessa manhã ele teria de sair logo, pois teria uma reunião importante no trabalho. Decidiu tentar amaciá-la antes de saber do que ela falava.
         ─ Ora, meu bem! Não fique brabinha! Você quer que eu faça um sanduiche quente?
         Essas palavras a levaram a quase atacá-lo. Saiu da porta onde estava encostada e deu passos pesados e carregados na direção dele. Tinha as mãos fechadas como se fosse soqueá-lo. Chegando à mesa, apoiou-as sobre a toalha, dobrou o corpo e falou quase tocando a face do marido. Falou, com os dentes cerrados, que odiava sanduiches de manhã, ainda mais quentes! As palavras foram emitidas calmamente, mas o tom era de fúria.
         Ao deparar-se com a cara de perdido do marido, ela gritou:
         — Você comeu a última banana! Não consigo passar sem banana no café da manhã. Meu corpo precisa de banana! Minha mente pede banana!  Para mim, não ter banana pela manhã é um caso de vida ou morte, e nesse caso é de morte! A minha por não estar, pelo menos, enxergando uma banana, e a sua por ter comido a minha banana. Há mais de três anos que estamos juntos e isso me dá uma raiva muito grande. Como você ainda não entendeu que não pode comer a última banana?
         Pedro ergueu-se, segurou-a pela cintura fortemente, colocou-a sentada na cadeira de onde ele saíra, arrumou a cabeça dela bem retinha, ajeitou-lhe os cabelos, colocou as mãos da esposa sobre a mesa e disse:
         — Fique bem quietinha, não chore, não grite!
         Virou de costas e saiu caminhando rumo à rua. Ouviu-se o bater da porta do apartamento.
         Agora era Laura que não entendia nada. Nunca vira Pedro com aquele tom de voz. Nunca vira seu marido  tão firme. O que ele iria fazer? Aonde ele fora? Será que voltaria? Por um instante chegou a se arrepender do escândalo que fizera por causa de uma banana. Porém em seguida julgou bobagem esta atitude, afinal ele é que não respeitava suas pequenas manias. Claro que tinha razão. Por que Pedro não pensava nela? Uma banana podia não ter importância para ele, mas esse desejo dela era incontrolável. Desde pequena, ainda na casa de seus pais, nem mesmo sua avó ou seu irmão menor ousavam comer banana se houvesse apenas uma. Era uma questão de respeito, de conhecimento e de aceitação do outro. Isso, era isso mesmo. Ela tinha razão!
         Nesse momento, Pedro adentra a cozinha coloca na mesa, bem em frente a Laura um cacho de bananas e pergunta:
         — Chega?
         Laura olha pasma para as frutas!
         Pedro sai, fecha delicadamente a porta do apartamento e vai trabalhar!


(Texto escrito na noite do dia 02 de janeiro de 2014, em Capão da Canoa)