Todos os dias, em algum momento, ela abria as portas da sacada da frente de seu apartamento, descia o enganador degrau - sim de tão baixinho, ele enganava os menos avisados que, algumas vezes, torciam um pé, mas ela não. Descia como uma rainha, observava atenta e carinhosamente a vista que dali tinha. Ela gostava, gostava muito. Respirava fundo enquanto ali se deixava energizar pelas nuvens, pelo céu, pelo sol, pelos pássaros, pelas copas das árvores.
Porém era à noite, quando não mais distinguia o céu das nuvens, os pássaros das copas das árvores. que o seu coração batia mais forte. Naqueles momentos quase obscuros, sua alma se iluminava com a luz que vinha das diferentes janelas dos prédios vizinhos. Olhava à direita e lá estava imponente aquele prédio que mais parecia um caixote amarelo. Primeiro era a cobertura dele que se iluminava, parecia que nunca apagavam a luz. Raramente avistava alguém ali. Por que, então tanta luz? Virava o rosto para a esquerda e deparava-se com o vizinho do quinto andar do edifício branco , que a cada entardecer lavava suas roupas, cuecas, meias, camisetas e até um par de tênis branco era higienizado. Abaixava a cabeça e tentava ver alguma coisa por entre as copas das árvores das casas antigas da rua detrás. Lá, em um dos sobrados funcionava um Centro de Umbanda e, três vezes por semana, nossa amiga, quase entrava em transe ao som do batuque que subia até o seu apartamento. Sentia-se uma espécie de zeladora daquilo tudo. Sentia-se poderosa. E à medida que o céu escurecia, mais luzes se acendiam, e ela ia ficando mais excitada. Dentro das janelas, vez ou outra, vislumbrava o caminhar agitado da donzela inquieta, que provavelmente aguardava o amado, amado nunca visto, vai ver nem existia. Avistava ao longe, mas claramente as grossas coxas do rapagão que encontrava diariamente na padaria, às nove da manhã, tomando um cafezinho e vestindo um terno preto. Sempre pensava nas pernas que ela bem conhecia e que estavam cobertas pelas calças. Imagina se ele descobrisse. Ela morreria de vergonha. Em certas ocasiões, ouvia o choro ainda sôfrego de algum recém nascido. Quem teria tido a bênção de ter um bebê em casa? E as crianças do prédio da rua ao lado? Acho que faziam aniversário mais de uma vez por ano, pois não havia final de semana sem festa e como gritavam. Nunca conseguiu entender por que cantavam tantas vezes o tal de "Parabéns" , seguido de muitos gritos, sim, porque criança grita! Por quê?
Hoje não foi diferente. Abriu a porta da sacada, desceu elegantemente o degrau e sorriu, sorriu imaginando tudo o que sempre vira, sabia até quanto tempo cada ação demorava. Os anos haviam passado, e ela não mais tinha a visão boa como no tempos de jovem, mas tinha uma impecável memória, e esta fazia colorida sua vida! Era feliz porque tinha o que lembrar.
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