segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Insana borboleta

        Estava dentro do casulo  e dali não queria mais sair. Seu tempo de virar borboleta já passara. Voara tanto, andara por tantos diferentes lugares, encontrara tantas diferentes pessoas que já se perdia em sua lembranças.
         Por que voltara ao casulo? Como fizera isso? Tivera ela outra oportunidade de ser borboleta? Conseguiria ser a mesma que a tantos conquistou, que a tudo alcançou? Essa era uma incógnita que a deixava insegura, com vontade nem sequer de começar a metamorfose. Havia sido tão feliz, havia recebido tanto, havia sorrido tanto que o fato de não ser tudo igual ao que fora antes a fazia  penetrar numa nebulosa de sins e nãos, numa hesitação de tirar a energia, numa culpa por estar querendo mais!
        No aperto das paredes de sua casa, seu corpo somava-se a seus desejos e juntos quase viravam um monstro a querer desprender-se das amarras, a tentar arrebentar os muros de concreto de sua consciência que não lhe permitia sair a conquistar, a vencer, a brilhar novamente. Que estratégias a auxiliarão a tomar esta decisão? Quem poderá ajudá-la a arrebentar com tudo que a prende? Não eu não devo! Por que acha que não pode voltar a ser aquela borboleta linda, colorida e vistosa? Que mal há nisso? Onde está a regra de que a lagarta sairá do casulo e voará somente uma vez? Impossível uma anomalia? Sim, eu quero ser uma anomalia. Ser algo jamais visto, nunca ouvido, nenhuma vez apreciado!
        Sentiu que sua vontade estava ficando mais forte. Seus membros moviam-se na tentativa, às vezes, insana. E nesta insanidade ela afundou-se, abriu as asas, arrebentou tudo que a impedia de viver outras experiências e lançou-se num voo ao infinito.
     

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Uma casinha branca

        Em meio à grande floresta, sem que se pudesse imaginar, achei um portão de madeira. Vi que ele fazia parte de um muro também de madeira, em ripas cruzadas. Abri, espiei e não consegui me controlar, entrei.
        Deparei-me com um lindo jardim. Não havia flores, talvez não fosse época das plantadas ali, mas o verde estava fresquinho, via-se que era bem cuidado. Fechei delicadamente o portão e olhei para as irregulares, mas lindas pedras brancas que formavam o caminho que ia dar no avarandado da casinha também branca. Casinha simples, pequena, de apenas a porta principal em sua fachada. Na varanda, cadeiras  de braço, aparentemente, confortáveis, também brancas.
        Dei início a caminhada, algo me fazia ir na direção dela.E, como se fosse criança, lembrando as brincadeiras que fazia quando pulava de pedra em pedra, avancei sem falar, sem fazer qualquer barulho, afinal não havia sido convidada a entrar. Uma incrível névoa de magia me cobria. Talvez pertencesse àquele lugar. Por outro lado, apesar de minha alegria e satisfação um cansaço estranho tomava conta de mim. E bem no meio do caminho havia um banco de pedra. Sentei-me e descansei observando a água que jorrava no chafariz do outro lado estradinha. No ritmo da água, meu pensamento foi a minha infância, percorreu minha vivência e chegou ao ali, ao agora daquele momento.
        Ergui-me com dificuldade e segui. A distância era menor, faltava pouco. Faltava pouco para quê? Eu não sabia. Coloquei o pé no piso da varanda, olhei demoradamente cada cadeira. Elas passavam a ideia de que nunca alguém sentara. Embora um cansaço indescritível e inesperado quase me derrubasse, fiz um esforço para me manter em pé e, principalmente, para me manter em silêncio, sem dizer um ai, o que estava difícil. Quando quase encostei no porta, as luzes das lamparinas começaram a piscar, e uma voz grave e aveludada disse: " Se passares desta porta, daqui não mais sairás. Teu caminho estará no fim!"
        Por alguns segundos, virei estátua! Aquela frase  "Teu caminho estará no fim." ecoava dentro de mim. Sem saber de onde me veio uma força e um ímpeto incontrolável, gritei: "Não!" e saí correndo, abri o portão e fui para bem longe daquele lugar.
        Hoje, anos depois, às vezes me pego pensando no que eu teria encontrado se tivesse entrado por aquela porta.


     

terça-feira, 21 de abril de 2015

Um domingo de Inocência

        Saiu de casa, batendo a porta como se não fosse nunca mais voltar. Cansara de tudo, de seus móveis, de sua vista, de sua comida, da sua cama. Acordara de mal com a vida, pensou. Pegou o elevador, ficou aliviada que estivesse vazio, não precisaria trocar cumprimentos com ninguém. No térreo, percorreu o longo corredor que terminava na grande porta de ferro, abriu-a e foi-se. A rua estava tranquila, quem não estava tranquila era ela, Inocência Maria do Canto Rocha. Abriu a porta do carro, atirou a bolsa no banco do carona e aboletou-se como se fosse fazer a viagem de sua vida.
        Depois de alguns quarteirões, deu-se conta de que não tinha a menor ideia de para onde ir. Deixou-se levar, sabe-se lá por que. Ao virar à direita e entrar numa avenida avistou, ao longe, sentada, encostada num muro uma pessoa. Aquela visão tirou nossa motorista de seu umbigo. Foi seguindo com o olhar fixo na criatura. Num relance olhou a sinaleira e freou. Ali estava Inocência, tendo à esquerda uma imagem com a qual não gostaria de ter se encontrado: um homem negro, muito preto reluzia ao sol. Vestia abrigo, na noite anterior havia feito um friozinho, estava imóvel, tórax recostado, pernas entre abertas, calçava um bom tênis. Sua bochechas pareciam inchadas, e o seu olhar...ah o seu olhar! Seu olhar era distante, era pensante, era emocionante. O sinal abriu e o homem sumiu das vistas dela.
        Mais dois quarteirões, faixa de segurança sem sinaleira, homem atravessa sem nem olhar para os lados, fazer o aceno com a mão nem pensar. Inocência Maria freou de novo. Enquanto aguardava o desfile da ilustre criatura, sua mente lhe peguntava o que estaria acontecendo com as pessoas? Falta de amor próprio, falta de objetivo, falta de esperança, desamor? O homem passo a passo foi de um lado a outro da rua sem olhar para o carro dela, muito menos para ela. E o "muito obrigado" não existe mais? É,  não!
        Seguiu levada pelas rodas quando sentiu que estava sendo pressionada por um carro. Para que ficar pressionando se as outras faixas estavam livres? Buzina nervosa, ronco do motor. Desta vez ela não freou, trocou de faixa e ficou cuidando para ver quem era. Era um casal, nem muito novo, nem  muito velho. O carro nem muito velho nem muito novo. A caroneira não olhou para os lados, mas o motorista, ao passar por nossa amiga, lançou-lhe um olhar como se quisesse matá-la com as faíscas. O carro branco, batido na lateral e na traseira sumiu em alta velocidade.E a cabeça de Inocência Maria se pôs mais uma vez a pensar em qual a vantagem de ter esse tipo de atitude no trânsito.
        Quando viu, estava entrando no clube que costumava frequentar. Achou bom, tomaria um pouco de sol. Que maravilha! Pouca gente, sem vento, dia não muito quente, silêncio gostoso. Era isso! Sim, havia acertado. Começou a sentir o frescor da felicidade enchendo seu coração. Sentou-se numa cadeira espreguiçadeira e deixou o calor dos raios solares penetrarem-lhe as células de seu rosto. Mexeu o corpo tentando ajeitar-se e acabou deitando. Sensacional! Nada melhor do que se esticar ao ar livre sem fazer nada. Ouviu o arrastar de chinelos. Sempre odiou arrastar de chinelos. Por que não caminhar de maneira a não fazer barulho? Que coisa mais relaxada. Deve ser um homem gordo. Era uma moça de biquíni, chapéu, óculos e chinelos. O celular na orelha. Inocência conclui: está esperando alguém.
        Tudo estava às mil maravilhas quando ouviu gritos masculinos chamando "Carol". Era o namorado da relaxada. Ainda bem que foram se instalar bem longe. Porém o clube estava quase vazio, e o casal resolveu discutir a relação. Pode? Poder não deveria poder, mas eles encenaram a mais idiota das discussões. A voz da moça era mais fraca, mas o cara era o melhor exemplo de alguém sem a mínima educação, mas com a voz clara, forte e muito bem colocada. Poderia ser ator de teatro de rua. Além disso, era um bobalhão, tendo em vista as ideias que expunha. E Inocência ouvindo tudo. Acabou levantando e indo embora.
        Novamente foi-se deixando levar e quando se deu conta estava em casa. Entrou, largou a bolsa sentou-se na poltrona preferida e pensou no homem negro reluzente e viu a inocência no olhar dele, inocência de ter sido levado a beber demais, inocência de não ter a malícia pra enfrentar as maldades da vida. Veio-lhe à mente o atravessador da rua e concluiu que ele deveria ter brigado com alguma Maria ou estava atrasado apara o encontro com  uma Maria.  Fechou os olhos e enxergou o carro branco agora demolido num canto. E pensou que Carol deveria ser um rocha para aguentar aquele bosta. Como era bom estar em casa!
       

sexta-feira, 13 de março de 2015

Magnólia

            Um calor escaldante penetrava as entranhas daquele vilarejo  situado num recôncavo entre pequenos montes. Pouca gente ainda morava por ali, somente os mais velhos, os jovens haviam saído em busca de melhores oportunidades. Moradias novas não mais eram construídas, tudo havia envelhecido, tudo tinha a cor do nada, o som do nada, o cheiro do nada. Esperança era um sentimento esquecido, a não ser quando se pensava ou falava na senhora da Rua Única do Monte Um, sem número: Magnólia da Glória dos Santos de Oliveira.
            Poucos a conheciam, muitos a temiam. Todos sabiam que ela existia, ninguém comprovava que estava viva. Magnólia da Glória dos Santos de Oliveira era uma figura quase fantástica do lugar. Escondia-se no alto, e diziam que de lá via tudo e todos, porém não aparecia para ninguém. Os que mais perto de seu terreno chegaram algum dia jamais contaram o que viram ou ouviram. Provavelmente não viram ou ouviram coisa alguma. Magnólia tinha o dom de não ser vista. Um mistério!
            Mistério era o fato de que, apesar do calor e da seca pela qual aqueles recantos passavam há meses, Magnólia vivia em meio às flores, ao verde. Como ela conseguia? Não chovia, não ventava, até as aves da cidade haviam sumido do vale, subiram o Monte Um.  Era conhecida como milagrosa, afinal tinha “dos Santos” em seu nome, devia ser protegida por todos eles. Outros especulavam a respeito do “da Glória” que devia trazer somente glórias e vitórias. Sem falar do primeiro nome, que já era de flor: Magnólia! E assim, dia após dia, o contraste ia ficando cada vez mais visível.
            Crianças não mais nasciam ali, nem mesmo os animais copulavam. Os que insistiam em ficar se arrastavam, a vida andava rengueando, era o caminho para o nada, era o fim do fim. Se morressem, nem enterrados eram. Os corpos ficavam onde o coração parava, murchavam, fediam, secavam e misturavam-se à terra quebrada. E Magnólia, de seu paraíso, vendo tudo, era o que comentavam os poucos que sobravam, olhando com certa inveja uns, com desconfiança outros.
            Um dia, do nada, sem explicação plausível, um líquido espesso e vermelho começou a descer os montes e foi inundando, pouco a pouco, as ruas, os terrenos, as casas. Os viventes não conseguiam fugir, as pernas não andavam, tropeçavam nas pedras, caíam e afogavam-se. Os que nas camas estavam eram simplesmente engolidos e esticados ficavam. Os que sentavam às mesas, assim permaneciam cobertos pela lama colorada, sim parecia lama, talvez um pouco mais fina. O fenômeno foi crescendo, a cidadezinha sumiu e formou um grande lago de “água” vermelha como sangue.
            Naquele mesmo dia, quando anoiteceu, raios de luz vindos de diferentes direções no céu focaram o Monte da misteriosa Magnólia. Lá, agora, ao contrário de sempre, não havia mais aves, animal algum, não havia mais flores, verde nenhum. Tudo estava tão seco quanto à cidade que sucumbira. Em meio àquela desgraça instantânea e surpreendente, somente a oliveira se destacava, cheia de charme, repleta de olivas, brilhando. Dela começaram a sair sons estranhos, pareciam tambores imitando o pulsar de uma vida forte e inabalável. A oliveira foi aumentando de tamanho, seu tronco engrossando, seus galhos alcançando os mais longínquos cantinhos, parecia querer levar alegria e esperança. Entre aquelas notas indecifráveis emitidas pela árvore, um som se sobressaiu: uma espécie de voz, semelhante à voz de uma mulher. Primeiramente ria, ria muito, gargalhava. Depois parou e passou a falar: “Ó, vós, que aí embaixo estais! Por que não lutastes por uma boa vida? Por que não fôreis em busca de estratégias que mudassem a corrente da história de vossa cidade? Por que deixastes vossos filhos saírem? Por que tomastes os desafios por obstáculos? Por que, quando mergulhados na ignorância e na inércia, vossos pensamentos focaram no Monte Um, sugando-lhe a vida que exuberante expunha. Vós, com vossa inveja, tentastes buscar a melhoria ás custas de outro, não por vossos méritos, mas arrancado-lhe o que podíeis; por isso, hoje estais como um navio que perdeu seu rumo, que ficou à deriva e o mar engoliu.”
            Um silêncio amedrontador tomou conta do vale. Alguns segundos passaram até que se ouviu o falar piado de uma avezinha branca que voava à beira do lago rubro. Um dos raios mudou o rumo e dirigiu-se a ela. E aquele pequeno ser frágil, agora, brilhando em luz, disse: “Senhora Oliveira, não fique triste! Antes de que tudo aí em cima secasse, recolhi sementes com meu bico e estou espalhando-as na terra úmida perto do lago rubro, rico da vida recebida de vós. Com a proteção dos Santos, tenho certeza de que brotarão belas plantas. Vai ser a glória!”
            A senhora Oliveira ficou tão feliz com o magno gesto da ave que disse:   “Avezinha corajosa, a tua decisão salvou este lugar. Uma linda vegetação cobrirá o vale e nela nascerá uma bela cidade que se chamará Magnólia! As pessoas que aí vão se estabelecer terão garra e farão do lugar uma cidade visitada por muita gente pelo vermelho das águas de seu lago e por causa da história de seu surgimento. Alguns acharão que é verdade, outros julgarão ser uma lenda! Todos serão felizes aí!

sábado, 7 de março de 2015

Eugênia

        Eugênia adorava estar na água. Três vezes por semana ia a sua aula de natação. Ela não era criança, muito menos jovem, já estava chegando aos oitenta, mas estava em forma. Quando falo em forma, falo do físico. Aquele físico de alguns idosos, caídos, não tem saída, mas funcionando melhor que outros. Minha mãe sempre dizia: máquinas velhas , mas bem cuidadas, tipo carros.
        Pois a nossa amiga cuidava bem do motor. Cuidava também da pele. Mas a cabecinha tinha seus engasgos, repetia conversas. Era uma das primeiras de sua turma a chegar à aula, porém,  a última a entrar na piscina. Ficava fazendo não sei o quê no vestiário. Quando vinha, descia as escadinhas e andava um trecho dentro da água com as mãos para cima, parecia uma bailarina. Nadava, nadava., nadava. Era a primeira também a sair e ir para o chuveiro. Às vezes nem fazia os alongamentos.  Por que a pressa? Ninguém sabia, pois dizia que aqueles dias eram seus, não fazia nada para ninguém! E ela não faltava aula alguma.
        Não se sabia nada de sua vida além dos momentos que conosco dividia, apesar de não conversar muito. Era, portanto, uma pessoa que atiçava a nossa curiosidade, pois a maioria das colegas, enquanto tomava banho e se vestia, contava seus problemas, suas alegrias, falava de sua família. Ela não! Aliás nem nos ouvia porque ficava no chuveiro por muito, mas muito tempo mesmo. As poucas que iam ficando por fim, por demorarem mais, diziam que ouviam murmúrios, sons de batidas, como se fossem tapas pelo corpo. Ninguém ousava perguntar o que fazia. Ano após ano, a mesma coisa. Notava-se que ela estava ficando magrinha, menor. Supunha-se que era da idade.
        Numa sexta-feira, véspera de uma feriadão, ocorreu o mesmo. Todas se arrumaram mais rápido. Algumas viajariam. Desejaram-se "bom feriado" e o vestiário ficou vazio. Ninguém se lembrou da Eugênia. Na terça-feira, suas roupas continuavam no cabide; na quarta, também e assim foi por toda a semana. Os donos da escola recolheram-nas e disseram que não podiam telefonar para ela pois não tinham o número. 
        Eugênia nunca mais apareceu. Só se soube que uma menina, que chegara para a aula seguinte, no dia em que ela sumira, ouviu uns sons, enquanto colocava o maiô, tipo gritos abafados por água. A pequena disse que se assustara, mas deu uma olhada nos boxes e não viu ninguém. Será que Eugênia murchou tanto que acabou indo pelo ralo?

        

domingo, 1 de março de 2015

Noêmia

        Noêmia! O próprio nome já revelava algumas características da criatura. Algumas positivas; outras negativas. Era boa, muito boa, calma, sorridente, quase uma santa. Pelas letras do seu nome podia-se listar as outras: "n" de nada, era praticamente um "nada" pois não se impunha, deixava fazerem o que queriam com ela; "o" de oca, parecia que não tinha pensamento próprio, vontade; "e" de estagnada, pois tudo que se relacionava a ela não andava; "m" de medrosa, sim, a impressão que transmitia era que tinha medo de viver; "i" de insegura, já que, algumas vezes em sua vida, tentou mudar, mas não teve coragem; e "a" de abobada, que ela me perdoe, mas era uma abobada, sim.
       Mesmo desse jeito, Noêmia casou, teve filhos, estes cresceram, foram embora, o marido morreu. A criatura ficou sozinha no sítio onde morou desde que se casara. Nem tentou mudar. Dali tirava o seu sustento, na verdade, seu alimento. Tirava leite das vacas, não bebia nem vendia tudo. Fazia queijo, acabava com o intestino entupido de tanto comer. Colhia flores do jardim, e a casa virava quase um cemitério com a mistura dos cheiros bons e dos podres. Colhia alfaces, não vendia muito, pois esperava que alguém aparecesse, e terminava passando dias comendo muitas folhinhas verdes. O que acontecia? Entrava numa diarreia sem fim que a atirava na cama por horas de tão fraca. E assim era a relação dela com os alimentos.
        Não saía dali com exceção do quarto dia do mês quando ia ao banco pegar o dinheirinho que recebia como viúva. Espera na estrada o ônibus que a levava, cobrindo-se de poeira. Desembarcava, caminhava duas quadras, entrava no prédio moderno, pegava a pensão, colocava na pequena e puída bolsa de couro com alças curtas, tomava a condução novamente e, chegando de volta, dividia as notas em vários montinhos e ia escondendo pela casa. Não gastava. Não tinha carro, não tinha televisão, não tinha rádio, não tinha fogão a gás. Às vezes, quando precisava andar mais longe dentro do sítio, montava no velho burro, não para poupar suas pernas, mas para fazer o animal se mexer um pouco. Gostava de sentar à varanda e ficar apreciando o movimento dos pássaros, dos insetos e dos pequenos animais. Seu rádio era o canto do galo, o cacarejar das galinhas pondo ovos, o canto das aves. Fazer fogo no fogão a lenha era o seu divertimento.
        Um dia, lembrou de uma tia que tinha na capital. procurou e achou um papelzinho com o telefone. No mês seguinte, quando foi pegar seu dinheiro, pediu licença para o gerente do banco e telefonou para a tia. Combinou que iria visitá-la Diversas vezes se entusiasmou, mas acabou desistindo. Ao ver o chão de seu quintal pintado de laranja pelas bergamotas no chão; de verde, pelos limões que não dava conta de consumir; de vermelho pelas mangas que lhe caíam na cabeça, tomou uma decisão e não pensou em nada. Recolheu as frutas em bom estado, pegou vários queijos, colheu alfaces e chás, colocou tudo em sacolas de lona, pegou o dinheirinho que conseguiu achar,  nem fechou a casa e foi para a cidade grande. Ela, Noêmia!
      Viajou encantada com tudo que via, chegou, tomou um táxi e, como o falecido havia uma vez ensinado, deu um papel com o endereço e alcançou a sua meta: a tia Rosa! Foi ficando, gostando, até que um dia a tia a convidou pra ir à aula de hidroginástica. Disse que iria assistir. Lá a convenceram a entrar na piscina. Titubeou, porém estava disposta a mudar. Pegou um maiô emprestado, vestiu-o, dirigiu-se ao ambiente da aula. Iniciou um longa e cuidadosa descida das escadinhas. A água foi subindo, ela afundando. As demais senhoras, ocupadas com os exercícios, não viram Nada, não observaram a Ousadia, o Esforço, a Mágica,  a Inabilidade  e o Afogamento de Noêmia! A Noêmia Nada, Oca, Estagnada, Medrosa, Insegura, Abobada havia realmente mudado!
        

domingo, 8 de fevereiro de 2015

O Monstro!

        Acordou assustada. Não era nada. Foi ao banheiro e voltou a dormir. O monstro voltou junto e começou a atormentar. Ele era grande, muito alto e fedia. Cheiro de gente sem banho. Cambaleava, falava coisas sem nexo. O que ele quer comigo, pensou. O sono retornou mais profundo, e ela sorria. O ser devia ter ido embora.
        Levantou, o coração batia mais forte do que nunca. Estou tendo um ataque do coração! Não! Caminhou normalmente pela casa, o dia estava dando início aos trabalhos e mostrava que estaria iluminando aqueles que com ele se importavam. O dia! Quanta gente não tem a menor ideia de como nos traz alegria, como nos presenteia com tempo, deixa-nos ver tudo claramente, enobrece e nos faz feliz. Chegou à cozinha! Levou um susto.
        O monstro lá estava, forte e frágil, amedrontador e carente. Ela faz meia volta. Voltaria a dormir. Talvez em sono ele não existisse. Ou seria o contrário? Deu alguns passos, parou no meio do corredor. Nada ouviu. Ele agora parecia morto. Não faz ruído algum, não está me ameaçando! Virou-se e ficou por um instante observando aquele corpo enorme e doce. Ele não se movia, estava sentado no chão, encostado à parede, com a cabeça entre as pernas. Ela deu alguns passos, segurou-se no batente da porta, estava se sentindo fraca, tão fraca quanto ele, aquele ser, real ou imaginário, já não sabia mais nada. Apavorou-se, lágrimas desceram-lhe pelo rosto cansado e tomavam o rumo dos sulcos que a idade havia lhe cavado. Esfregou as mãos pela face, firmou as pernas, respirou fundo e dirigiu-se a ele.
        Agachou-se ao seu lado, levantou-lhe a cabeça, viu que respirava, porém nenhuma reação tivera. Inofensivo o animal. Pegou-o pelos braços, apoio-o nos ombros e carregou-o pela casa, arrastando-lhe os pés. Nem ela mesma acreditava no que estava fazendo. O monstro, naquela situação, apesar de dizerem "peso morto" para o que pesa muito, estava leve, leve como um bebê recém nascido, leve como uma folha frágil que se deixa levar pelo vento. Deitou-o! Agora ele está lá ainda. Uma criança de quem ninguém deve ter medo, uma criança para quem se deve dar amor, uma criança que esqueceu de crescer.
       

sábado, 24 de janeiro de 2015

Amor sem preconceito!

        Entrei! Ainda bem que os porteiros estavam conversando, não me viram. Sempre tive uma curiosidade enorme. Vejo tanta gente passar para cá de carro, de bicicleta, a pé. E muitos levando cachorrinhos! São tantas ruas, tantas casas. Aquilo ali parece um clube. É, tem umas mulheres, moças bonitas, jogando o tal de paddle. Não vou parar. Os jardins são bem cuidados, tudo limpo. Estou curioso para dobrar numa destas vielas e descobrir se tem algo mais interessante ainda. Na verdade, estou me cansando, acho que estou com fome. O sol está tão quente!
        Esta rua me parece legal. Vou ver! Engraçado! As casas são bonitas, mas todas parecidas. Se eu morasse por aqui me perderia seguido. Cachorrinho da madame preso pela guia numa varanda, olhando para mim. Não adianta latir. Não tenho medo de ti. Nesta outra agora um gato preto metido. Olha só! Tem um colar de strass! Muita frescura!  Nem se mexe, atirado no ladrilho, provavelmente, geladinho. Até que tem sorte!  Eu não gosto de felinos, são sempre preguiçosos. Ora! Não tem saída, tenho de voltar.
        Nossa! Que gatinha! Quer dizer, que cadelinha gatinha! Será que ela vai latir? Vou tentar chegar perto. Está vindo em minha direção, que emoção! Está me cheirando, examinando. Vou ficar bem quieto para ela não se assustar. Ai, meu Deus, está se esfregando nas minhas pernas. Acho que gostou de mim. Vou fazer carinho nela. Assim! Viu! Fechou os olhinhos redondos quase tapados pela franja. Gostou! Alguns bichinhos dessa raça andam com um pregador ou lacinho, segurando os pelos para cima. Esta aqui está bem charmosa e sexy. Hum, a sacudidinha de cabeça que deu agora me conquistou. Como será o nome dela?
        "Bebê, vem pra dentro! Não te metas com estranhos!"
        Ela foi, porém, de vez em quando, parava e dava uma olhadinha para mim. Caminhava dando uma requebrada. Uma danada! Eu não tirava os olhos dela, estava apaixonado. Tinha esperança de nos tornarmos pelo menos amigos. Minha ela nunca seria. De repente a coisinha linda voltou correndo em minha direção. Eu pensei: "Ela quer ser minha!" No entanto, a Bebê tinha dona e era braba a mulher.
        "Bebê! Volta! Não te esfregues neste sarnento!"
        O sarnento era eu? Será? Será que estou com sarna? Uma vez me olhei na vidraça de uma vitrina e me achei até bem bonitinho. Sou preto, pequeno, estou magro, muito magro. Mas sarnento? Já tive um dono. E era bem tratado, até mais gordinho. Não sei direito o que aconteceu. Será que me perdi? Eu saí com seu Inácio. Ele abriu a porta da carro. Fiz xixi e nunca mais o vi. Achei que por aqui alguém me quereria. Acho que não. Parece que só a Bebê me quer. Olha só como passa a língua em mim! Que felicidade!
        "Bebê! Mas que teimosa! Vou te pegar e colocar a guia! Não quero que pegues doenças destes vira-latas!"
        A moça veio, pegou a minha Bebê e a levou para dentro de casa. A minha cadelinha gatinha foi para uma das janelas e ficou me olhando. Olhando para mim! Um cachorro sarnento, vira-latas e sem dono!

       

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Aquelas costas!

        Aquelas costas! Quantas vezes num dia, quantas num mês, quantas nesses anos todos olhando pela minha janela, percorrendo as janelas alheias. Até um binóculo comprei. Nada, absolutamente nada que me agradasse aparecia. Sempre o mesmo: vidraças entreabertas, roupas dependuradas, às vezes, à noite, as pernas de alguém sentado, provavelmente assistindo televisão. Tinha aquele rapaz que, ao final de tarde, vinha à murada da área dos fundos de onde morava e fumava um baseado. Tinha também o que lavava suas roupas de baixo diariamente e o outro cara cujo rosto nunca vi, pois este estava escondido atrás da tela de um notebook, mas suas pernas eram razoáveis. 
        A semana que terminara havia sido de tempo ruim, mas, apesar das chuvas, a temperatura não baixava. O calor castigava  a todos. Nem os papagaios, que normalmente batiam um papo em cima do prédio vizinho ao meu, apareciam. Deviam estar discutindo sobre o clima aboletados em alguma árvore, curtindo uma sombra. A maioria dos moradores havia se mudado para a praia. Felizes os que têm um lugarzinho mais saudável, mais natural, diferente desses pombais onde a modernidade nos fez empoleirar, em vista de segurança. A gente que assim reside, vai de uma nesga a outra de sol para tentar pegar um bronzeado. Sair a caminhar, nem pensar. Vira-se torresmo!
        Eram dez horas da manhã quando acordei, afinal era domingo. Abri todas as janelas para os anjos entrarem e abençoarem meu lar, assim minha mãe ensinou, e deixar o ar da manhã lavar os pensamentos ruins e desgostos dessa vida. O Sol! Sim! O Sol lá estava a iluminar cada cantinho de meu coração. Ele, o Rei não deixava nada feio. Tudo brilhava, tudo parecia cantar a alegria desta vida. E de janela em janela eu fui indo, olhando detalhadamente a paisagem. Até a basculante do banheiro foi forçosamente escancarada e um raio do meu Rei entrou majestoso, arrastando poesia pelos ladrilhos.
         Foi ele, eu tenho certeza, foi ele, o Rei, o Sol a causa daquela visão. Aquela visão que me fez deslumbrar o fogo de uma paixão, que me fez lembrar os melhores carinhos, que me fez ter vontade de passar novamente as mãos numa pela macia. De costas, apoiado numa das janelas visíveis do meu apartamento estava um jovem, expondo seus ombros, seus músculos, suas espáduas, sua cintura fina. Brilhava, brilhava muito! O calor já era tão forte àquela hora que o suor, com certeza, saía-lhe pelos poros e deixava toda sua pele molhada. E isso fez minha mente viajar a um passado distante, mas não esquecido, a um passado muito bem vivido, a um passado que me dá forças para continuar a minha jornada só, satisfazendo-me com o prazer de ver, ao longe, umas costas bonitas de um desconhecido rapaz cujo rosto não tenho a mínima ideia de como seja!

sábado, 10 de janeiro de 2015

Minha mulher

        A noite estava escura apesar da Lua estar na fase cheia. A tarde já havia sido triste, sem sol, com chuvas. O verão chegara de mau humor, trazendo dias febris. Trazia também um céu furioso que, de vez em quando, decidia soltar sua raiva inundando alguns de medo e outros de prazer. De repente a luz apagou, o telefone morreu, a televisão desligou, o refrigerador não mais gelou, o ventilador lentamente deixou de assoprar. Breu! O que fazer?
        Aceitei o convite de minha mulher para sentarmos na sacada. Ali estava agradável. Estávamos casados há mais de vinte anos. Durante esse tempo vimos  e vivenciamos sem parar o desenvolvimento do muitas tecnologias, a maioria na área da comunicação. Nossa filha já não necessitava tanto de nós, já não trocava conosco ideias, já tinha o seu companheiro. Ficamos naquele silêncio perturbador. Aquele silêncio de quem sente vontade de falar, de conversar, mas não sabe como dar início. Sentia que ela, de vez em quando, olhava-me com o canto dos olhos. Um estranhamento tomava conta de nós, não tínhamos mais assunto! E a luz não voltava!
        Com o mesmo impacto que a energia do bairro nos deixara, minha mulher me propôs dizer um texto que há muito ela sabia. Não esperou a minha reação. Desatou a falar com diferentes entonações, revelando diversas emoções. Eu nem me mexia, nem a olhava, tinha medo, medo de que ela estivesse saindo do controle racional de sua ações. E estava com certeza, pois levantou, dirigiu-se ao muro da sacada e, com gestos extravagantes e voz empostada, continuou até o fim a sua apresentação. Isso durou um bom tempo. Ouvi uns cochichos na sacada do andar superior. Eles não tinham viajado, para minha vergonha. Mantive-me estático enquanto ela, minha mulher, aquela que eu havia escolhido para companheira de toda vida, fazia gestos de agradecimento, como se estivesse num palco. Gritava: "Obrigada! Obrigada!"
        A luz voltou, a campainha tocou, eu levantei e fui abrir a porta. Era a vizinha, perguntando se minha mulher estava bem. Não soube o que dizer.