segunda-feira, 28 de julho de 2014

Clara sabia

        Desde que casara e fora morar no grande casarão, isolado entre o mar e as montanhas, Clara jamais voltara à cidade onde nascera, nem mesmo para ir ao funeral de sua mãe. O marido era zelador e empregado da família proprietária e dizia que eles não podiam sair dali, pois os patrões não avisavam quando vinham.
        Clara mantinha o interior da casa na mais perfeita ordem e limpeza, enquanto Ernesto ocupava-se do lado de fora. Grama sempre cortada, caminhos bem varridos, pintura impecável. Dia após dia, mês após mês, ano após ano. No princípio, ela fazia tudo com prazer e amor, afinal, era para o seu amado. Tinha uma curiosidade imensa por conhecer os patrões. Imaginava a senhora, às vezes, magra e elegante, outras, corpulenta e desajeitada. Nunca boa. Sempre implicante, exigente e grosseira. Não entendia por que não a via carinhosa e educada.
        O tempo passava, o silêncio cada vez ficava mais grave e longo entre o casal. No entanto, Clara continuava a viver através das conversas imaginárias que tinha, inclusive, com o patrão. Ele nunca aparecera diferente. Era sempre o mesmo homem alto, com um ventre meio saliente, elegante, bem vestido e muito simpático. Mas o bigode e a barba, esses sim, à medida que o tempo passava, iam ficando mais brancos. Nos devaneios dela, o senhor entrava na cozinha e papeava com ela sobre os mais variados assuntos, contava-lhe das festas, dos teatros e dos livros.
        Um dia, quando Clara já não andava mais tão ligeiro como antes, ouviu seu marido chamar. Ele estava na garagem, fazendo limpeza nas ferramentas; ela no andar de cima do sobrado, trocando os lençóis das tantas camas. O dia estava ensolarado, apesar do frio. Ela desceu as escadas, atravessou a sala de estar, abriu a porta da frente, mais uma vez desceu alguns degraus, cruzou o pátio e entrou na garagem. Ernesto estava lá, estendido no chão, morto.
        Sozinha ela fez uma cova, enterrou o marido, colocou flores sobre ele, rezou e nunca mais voltou àquele canto do imenso terreno. Daquele dia em diante, Clara passou a fazer o serviço dos dois, agora cantando, dançando e conversando com as paredes, com as flores, com o mar, com as montanhas. Tudo permanecia extremamente limpo. Plantava, colhia, cozinhava, comia. Vivia!
        Finalmente, os patrões apareceram. Ele, exatamente, como Clara sempre via. Ela, nem magra nem corpulenta; nem elegante nem desajeitada. Os dois chegaram, cumprimentaram-na cordialmente, A serviçal relatou sobre a morte do marido e os encaminhou para os aposentos na parte de cima da casa. Eles foram para o melhor quarto, o mais iluminado, o mais aconchegante e, para Clara, o mais limpo.
        Clara chegou à sala de jantar e ouviu, ecoando por todo o casarão, uma voz feminina: "Esses lençóis não estão bem passados!"

sábado, 26 de julho de 2014

A busca

        Era uma sala de espera num portão de embarque de um aeroporto. Havia muita gente. O voo estava atrasado. Alguns dormiam mal sentados, agarrados a suas sacolas de mão; outros aproveitavam para fazer um lanche na pequena cafeteria; crianças corriam enquanto seus pais, nervosos, iam atrás; os mais afobados já estavam posicionados na fila, como se houvesse a probabilidade de perder o avião quando ele passasse, lembravam aqueles que, ao fim do dia, aguardam a condução para voltar a seus lares.
      O clima era esse e parecia que não mudaria tão cedo, quando aquele senhor de cabelos brancos, rosto redondo, bermuda verde combinando com a camisa clara, surgiu como uma inesperada criatura em meio aquela loucura. Ele estava e parecia ser calmo, muito calmo. Carregava na mão direita, estranhamente, uma pequena mochila, na verdade, assemelhava-se às frasqueiras que as mocinhas usavam nos anos cinquenta. Procurou uma mesa vaga, puxou uma cadeira, sentou e colocou-a sobre o tampo de fórmica vermelha.
      Se alguém pensou que ele ia chamar um garção, ou buscar algo para tomar, enganou-se. Olhou demoradamente a bolsa de mão, pode-se assim chamar, e iniciou sua tarefa. Havia muitos fechos. O senhor abria um, mexia os dedos dentro do espaço, fechava este e abria outro, do outro lado. Ele procurava algo, com certeza. Virava a bolsa, abria outro fecho, vasculhava cegamente, fechava. Virava para outro lado, abria outro fecho, tateava dentro e fechava. Assim, ele ficou, nessa intensa procura, por alguns minutos. Por último, decidiu abrir o fecho principal, o que dá acesso à parte maior da bolsa. Colocou a mão toda dentro, movimentou-a e a luz se fez em seu semblante.
        A voz feminina vinda do além anunciou o embarque, a fila começou a andar e o senhor não mais foi visto. O que será que ele procurava?

quinta-feira, 10 de julho de 2014

De joelhos! Pra quê?

        "Até quando você vai ficar aí de joelhos?" Essas foram as últimas palavras que ela disse. Pegou seus pertences deu meia volta. Percorreu o corredor sem olhar para trás. Gostaria que fosse diferente, mas qualquer atitude seria inútil. Não dependia dela.
        Cruzou a grande porta de madeira trabalhada e atingiu a rua como se tivesse se atirado num açude de águas tão turvas que não conseguia enxergar além de cada passo que dava. Mas não voltou atrás. Estava determinada. Lembrou de muitos momentos em que estiveram juntos. Alguns deles lhe encheram de ternura e saudade. No entanto, quando lhe vieram à memória as horas de desespero, de incerteza, de medo, sabia que sua decisão estava correta.
        Fora ali, no mesmo lugar de onde saíra, que, há alguns anos, iniciara sua tentativa de ser feliz. Ele chegou perto dela, ela sentiu seu perfume, ele pediu licença, e ela lhe concedeu. Simples assim. E do mesmo modo, aos poucos, seus vestidos foram ficando mais longos, sua unhas não mais recebiam esmaltes, apenas a tesourinha. Suas tardes entra as amigas foram se transformando em poucas horas, depois em minutos, e acabaram. Quando se deu conta ela não mais existia.
        Hoje, na missa, enquanto o padre lia o Evangelho, ela pensou na inutilidade de sua vida, no quão diferente estava do que havia sonhado. Olhou para o homem que ao seu lado rezava, ajoelhado. Não reconheceu nele o que se chegara de maneira tão delicada e tão cheio de ternura. Via agora um algoz, feio, fedido, horrível. A cerimônia religiosa já terminara e, como sempre fazia, ele permaneceu de joelhos, como se tivesse pedindo perdão.
        Os passos dela foram ficando mais rápidos. Não tinha destino. Só sabia que jamais voltaria.