sábado, 28 de setembro de 2013

Da janela dela

     Todos os dias, no final da tarde, ela sentava em sua cadeira. Não era qualquer cadeira ou poltrona, era a sua cadeira de "papai". Ali descansava as costas doloridas das tarefas já pesadas da casa, as pernas cansadas de tanto andar para lá e para cá e de onde tinha uma vista diferente a cada dia. Ficava meio em diagonal com uma das janelas da sala, encostada à parede oposta à rua. E enterrada nas almofadas já meio duras de tão usadas, nossa amiga ali ficava até que todo o espetáculo a que gostava de assistir se encerrasse.
     Daquele lugar, nossa espectadora não conseguia ver além do céu. Era uma janela, mas seu ponto de vista era o infinito. E o infinito lhe dava infinitas e surpreendentes lições de como se pode preencher um vazio. Havia dias em que o azul celeste tomava conta e com ele a paz chegava e se aninhava; porém, havia ocasiões em que a sensação era de que alguém pegara um pincel, enfiara em potes com diversos tons de vermelho e com ele riscara, sem nenhuma caridade, a tela que a natureza ali colocara, trazendo a paixão, o calor dos desejos; às vezes, quando o astro rei já estava se recolhendo dava ao palco de nossa amiga a cor rosa das lembranças de amores juvenis; no entanto, em alguns dias, tinha-se a sensação de que nenhuma cor mais existia no mundo, somente aquele cinza que não nos remete a nada melhor do que à tristeza de uma saudade, às lágrimas de um pesar, à dor de uma partida. 
     Hoje esse cinza tomou conta da janela da nossa amiga, e ela não gostou. Não era o que queria. Estava precisando de algo mais e sentiu-se decepcionada. Decepcionada com sua janela, decepcionada com a natureza, decepcionada com sua vida. Vidinha que considerou medíocre, simplista e improdutiva. Levantou da cadeira, buscou querosene, acendeu um fósforo e queimou, queimou seu trono, queimou sua mediocridade. Deixou as labaredas tomarem conta de tudo, saiu porta a fora, bateu-a e, sem se virar, sumiu no infinito.

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Como eu te amei

     Como eu te amei! Hoje escutando uma música cuja primeira frase, em espanhol, era "Como yo te ame", dei-me conta de que ela podia ser a música da minha vida. Como eu te amei! Como!
     O sangue da juventude fervendo alimentava aquela paixão. Era um sentimento indescritível, aliás, eu nem sabia que aquilo era o que era. Só muitos anos depois dei-me conta do tamanho daquele sentimento, pois nunca mais ele voltou, o sentimento, e ele também não. Eram momentos plenos, repletos da pureza macia do primeiro grande amor. Tudo parecia estar iluminado, tudo parecia emitir canções de amor pelos poros, pelas frestas, pelas sombras. Ah! Tudo era tão lindo e parecia que nunca mais terminaria.
     Quando se tem quinze anos e se recebe a graça de conhecer o que é amar, é como se imunizar contra todo o mal, toda a infelicidade, toda a solidão, todo o desamor que possa vir depois. Não importa o tempo que durou este amor porque a sua intensidade deu a força para resistir às desilusões, aos desafetos, às injustiças, aos socos que a vida acaba nos dando. Quando se tem quinze anos, deixamos a vida nos levar sem que se pense nas consequências. Então, se um imprevisto floresce a nossa frente, damos-lhe um empurrão, ele vai para o lado, depois para trás e achamos que nos livramos. Sacudimos a poeira e vamos de cara, de nariz em pé, de cabeça erguida enfrentando o que aparece, achando que tudo o que é bom volta, acontece de novo, repete-se como o dia amanhece depois da noite, e a noite chega depois do dia.
     Um dia, quando não se tem mais quinze anos, quando não se tem mais a mesma coragem e vitalidade, quando nosso nariz não consegue mais se manter tão empinado, quando nossa cabeça insiste em olhar para o chão, aos poucos, nosso coração se ilumina de sabedoria para nos mostrar o que não víamos na juventude. E, para uns com o choro do arrependimento, para outros com a conformidade serena do tempo que passou, lembramos o quanto fomos abençoados por ter conseguido viver tantas e tamanhas emoções, por termos sabido o que é amar.
     Como eu te amei!




sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Não era pra mim

     Eu não acredito! Logo agora que eu ia tentar conquistar esta loirinha, ligam essa porcaria de chafariz. Virou moda. Em todo o lugar decidiram colocar esses jatinhos de água que saem do chão. Olha só, em vez da água sair de dentro do laguinho para fora, ela vai de fora para dentro, e vem de todos os lados. Não é sempre que estou disposto a me molhar.
     Mas vou puxar um papo com ela assim mesmo. Se essa gatinha, opa, modo de falar, não sou chegado em felinos, então, se ela me der um pouquinho de atenção, com certeza vai acabar caindo na minha. Moreno, gostoso e forte como sou não há quem resista. Espero que a dona dela não me leve a mal. A minha é uma safada, diverte-se com minhas conquistas.
     Pensando bem, essa aguinha está me excitando. Nada como rolar molhadinho por aí com uma bela presa nas patas. Ela vai gostar. Vou dar aquelas mordidinhas no pescoço dela e depois nas orelhas. Oh! Já estou ouvindo seus gritinhos de prazer, quer dizer, seus latidos e gemidos. Lá vou eu.
     Pensando bem, acho que vou esperar um pouco, está tudo muito molhado, e se eu escorregar e bater, sem querer nela, antes do momento certo, vai pensar que sou um ousado, daqueles conquistadores baratos, que só querem se aproveitar. Toda a cautela é pouca nesta hora. O negócio é ter paciência para ter um bom resultado. Já imaginou se ela se apaixona por mim e decide vir morar comigo? Que encrenca iríamos arranjar. Cada vez que tive a sorte de encontrá-la por aqui, notei que meu coração bate diferente. Porém não tenho a mínima ideia de onde mora. A dona dela é aquela ali de calça de brim apertadinha. Eu já devia tê-las seguido, mas essa mania de não incomodar minha dona, às vezes, me atrapalha. Então, vamos lá, coragem, lá vou eu.
     Ah, não! O metido do cachorro do vizinho não perdeu tempo. Sai daí, seu nojento. Não, não chega perto do focinho dela. Bota essa língua para dentro, seu assanhado. Ela nem está te dando bola. Ou está? O que é isto? Não! Hora de ir embora? E a minha "gatinha"? O quê? Não acredito! Está se refestelando com esse vira-lata. Bem feito. Quem mandou eu ficar fazendo tantas conjecturas. Babacão! Não! Babacona! Sou demais para o biquinho, ops, para o focinho dela!

(Foto tirada em Charleston, Georgia, USA, em fevereiro de 2013)

terça-feira, 10 de setembro de 2013

Arco-íris

     E quando olhamos para o céu depois da chuva, ele estava lá, imperativo, dividindo o mundo em dois. De onde estávamos, a sensação que tínhamos era que, daquele momento em diante, tudo seria diferente. Poderíamos escolher se queríamos viver à direita ou à esquerda. E começamos a brincar de o que faria parte do mundo de um lado e o que pertenceria ao outro. E foi assim que nos demos conta de que somos todos muito diferentes um dos outros.
     Alguns queriam que de um lado só houvesse coisas doces: doces doces, cores doces, palavras doces, sentimentos doces, melodias doces. Houve aqueles que acharam que o doce acabaria por nos enjoar e do outro lado veio o amargo e com ele o amargo sabor das desilusões, a amarga dor das palavras ofensivas, o amargo pesar das perdas, o amargo sofrer da violência. Então os do lado doce chegaram à conclusão de que do lado deles estariam os rios, as relvas, as montanhas, os lagos. Junto ao amargo, decidiram que deveriam estar os oceanos, os desertos e a neve. E assim, cada grupo foi preenchendo o seu lado com aquilo de que mais gostava. Ao lado das doçuras, dos rios, dos campos e das montanhas colocaram os peixes, o gado, os animais domésticos, os pássaros. E  junto à amargura, aos oceanos, aos desertos e à neve, vieram as baleias, os tubarões, os animais peçonhentos, as aves grandes.
     Tudo estava assim se dividindo quando um menininho olhou para o céu e perguntou onde estava a tal da divisão. Todos ergueram as cabeças à procura do arco-íris e se deram conta de que, enquanto deliravam na discussão da escolha das coisas do mundo, haviam perdido o espetáculo uqe a natureza mandara para embelezar e dar alegria ao homem. Este, como sempre, em vez de curtir o momento, perdeu-se em pensamentos sem fundamentos, supérfluos e fúteis.
     Não há um mundo com isso e outro com aquilo. Tudo é necessário, tudo faz parte, tudo está na seu devido lugar, na hora certa, e tem o seu tempo de duração, não é senhor Arco-Íris?

(Foto tirada em Xangri-lá, RS, Brasil, em janeiro de 2009)

sábado, 7 de setembro de 2013

A espera (dois)

     Estou com medo.
     Foi isso que ela pensou antes de se despedir daquele quarto onde tinha passado os últimos anos de sua vida. Quando a colocaram ali, ninguém  lhe perguntou o que achava da decisão. O tempo passou, e as poucas visitas que recebia nos primeiros meses de seu isolamento, acabaram esgotando-se, e ela ficou só. Só com seus pensamentos, com suas sombras, com seus ruídos, com suas lembranças. Lembranças cheias de dúvidas e questionamentos. Por que estava ali? As chaves? Por que não tinha as chaves. Sentia-se fraca. O sol. Onde estava o sol? Quanto tempo ficaria ali? Por quanto tempo deveria esperar? Esperar por quê?
     Um dia vieram uns homens e abriram um buraco na grossa parede da torre do castelo e fizeram uma janela para ela. Uma janela com grades de ferro e vidros, os quais jamais foram abertos. Aquela janela passou a ser o mundo dela. Por ali ouvia o canto dos pássaros, por ali via as noites chegarem e os dias nascerem. Encantava-se com a chuva que molhava a copa das árvores que lhe enchiam de verde os olhos já cansados do marrom dos móveis velhos da reclusão. Apreciava, ao longe, os telhados das casas onde as pessoas da cidade viviam livremente. E ela imaginava o que cada um podia estar fazendo. Em seus sonhos acordada via casais se amando, crianças brincando, idosos arrastando pés, brigas, festas, tudo de que não mais participava.
     Hoje a porta se abriu. Ela avistou, primeiro, o assoalho brilhoso por onde agora arrastava os pés como os velhos de seus devaneios e, ao erguer com dificuldade a cabeça, avistou lá ao fundo o grande arco que a esperava. E soube. Dali teria a sua liberdade, dali abriria suas asas, dali sairia para nunca mais voltar. E foi assim que ela se foi e nunca mais voltou. Foi encontrar-se com os raios de sol, com os pingos da chuva, com o canto dos pássaros.

(Foto tirada num dos aposentos do Castelo de Edimburg na Escócia, em 2011)




domingo, 1 de setembro de 2013

A espera

      À noite, estaremos em Londres. Há quanto tempo aguardando o momento de estarmos vivendo a nossa vida, a vida pautada pela liberdade. Enquanto te espero, relembro tudo que nos fez felizes até hoje. Agora é vida nova.
     Cheguei cedo, a ansiedade não me deixava em  paz, não aguentava mais ficar naquele quarto, mesmo sabendo o quanto ele fora importante para nós. Saí quando o sol ainda estava fraco e o ar da manhã no campo ao lado da estalagem carregava a umidade que lavou a minha alma machucada por tantas incompreensões. Por que é tão difícil entender que fomos feitos um para o outro?
     Desde que aqui cheguei, vários trens já passaram, mas em nenhum visualizei a alegria que a cada minuto toma conta de mim. Em minha mente ecoam tuas últimas palavras ontem, embaixo da árvore de nossos encontros. Proferiste tantas juras, tantos desejos que nem sei se mereço este teu amor. Claro que merecemos, nada fizemos de errado a não ser ter um sentimento tão grande um pelo outro que acabou trazendo inveja a muitos.
     Estás demorando, deve ser a minha vontade de te ter por perto. Meu estômago parece pedir comida, mas acho que é a sensação de vazio por ainda não teres chegado. Não quero sentar-me. O cansaço está, aos poucos, subindo pelas minhas pernas; no entanto, quero estar em pé quando me vires. Em pé e de braços abertos. Sim. correrei ao teu encontro e te abraçarei como nunca. Será o primeiro abraço do início de nossas vidas juntos.
     O sol brilhou muito todo o dia. Gente chegou, gente se foi. A noite inundou a plataforma e o meu peito apertado parece que vai estourar. Já entendi, não tiveste coragem. E eu, na ilusão de um dia ser feliz aqui estou, a tua espera. Eu sei. Não vens. Eu sei. Compreendo. Eu sei. Tudo terminou. Eu sei. Adeus!

(Foto tirada em uma das estações de trem entre Londres e Glasgow, em outubro de 2011)