sábado, 20 de dezembro de 2014

O Natal de Mariazinha

        A noite estava iluminada dentro e fora das casas! Na maioria delas, havia um pinheiro, uma vela, um conjunto de luzinhas piscando e adornando uma janela. E lá no alto, linda e esplendorosa estava ela, a Lua em sua fase mais cobiçada, esperada, misteriosa. Era Natal! O Papai Noel, como em todos os anos, era esperado pelas crianças ansiosamente.
        A mesa estava repleta de gulodices e no centro aquela boleira! Nossa! Como aquele objeto carregava curiosidades. Os adultos pegavam as taças baixas de cristal que a acompanhavam e, com uma concha também de cristal,  enchiam-na com o líquido preparado pelo avô de todos. Sabia-se que ali tinha guaraná, frutas picadas e outras coisas que nós, crianças, não conhecíamos. Por que não podíamos beber? Hoje sabemos.
        A escadaria por onde o velhinho com sacos estourando de tantos brinquedos chegava sempre trazia um misto de medo e alegria. Ao ouvirem a campainha e o "Ho, Ho, Ho", os pequenos percorriam todas as peças da grande casa, gritando quase histericamente. Porém pouco a pouco iam se acomodando à porta, à espera dele. Ele vinha lento, degrau por degrau, ao mesmo tempo que os coraçõezinhos iam se acalmando. Entrava apoiado na conhecida bengala, sentava na velha poltrona ao lado da enorme árvore seguida do grande presépio que ocupava uma parede da sala. Primeiro cantávamos, depois rezávamos e, finalmente, começava a distribuição dos presentes, antecedida das tradicionais perguntas se havíamos nos comportado, passado de ano na escola e outras, que nos intrigavam, pois como ele sabia tudo!
        Mariazinha era a mais velha dos netos. Ia completar quinze anos no mês seguinte. Tornara-se uma bela mocinha, alta, elegante, longos cabelos negros e olhos  expressivos. Esperava sempre ansiosa o presente da madrinha, que a cada ano se superava na escolha. Nunca dera algo que a menina esperasse. Eram presentes surpresas e originais. E a menina jamais se decepcionara. Recebeu alguns pacotes que, ao abrir, identificou como da sua lista. Quando o último saco estava quase vazio, ouviu seu nome. Dirigiu-se lentamente para perto do bom velhinho que começou a fazer-lhe perguntas. Perguntas essas que a deixaram envergonhada. Queria saber se ela tinha namorado, se já havia beijado, se estava se preparando para ser uma boa esposa. Mariazinha não estava preparada para responder a questões desse tipo. Ficou vermelha, abaixou a cabeça e lágrimas quiseram rolar, mas se controlou. Pegou a caixa com um laço de fita de seda e voltou para o seu lugar ao lado do coleguinha de escola que viera passar o Natal com ela.
        Todos começaram a gritar: "Abre, abre!" Ela desatou o tope, abriu a caixa vagarosamente, viu o papel de seda que cobria o inesperado. Segurando a caixa com a mão esquerda, levantou o papel com a direita e, lá dentro, bem dobrado, apareceu algo de tecido. Um tecido fino, plissado  e rosa. O silêncio tomava conta do ambiente. Pegou com a ponta dos dedos trêmulos e sacudiu o que pegara. Era um lindo, transparente e sensual "babydoll"! Ela abaixou a cabeça novamente e correu em direção a um dos quartos com a caixa nos braços. A conversa e a alegria voltou na sala. Entrou fechou a porta, queria ficar sozinha. Sentou na cama e olhou , pensativa e demoradamente, para o presente. Não era mais um brinquedo, não era mais um jogo para divertir-se com os amigos. Ela não era mais criança!


quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

O baú

                Aquele baú sempre fazia barulhos que me deixavam intrigada. Em diferentes horas do dia ou da noite, no frio ou no calor, ele estalava. “Madeira antiga, boa” – diziam -  “É normal!”. E eu repetia essas desculpas quando alguém desprevenido se assustava ao ouvir seus quase gemidos. Está comigo há mais de quarenta anos, mas nem sempre foi meu. Comprei de um casal de colonos, velhos, que já não queriam tantos móveis em casa. Ele ainda enfeita a minha sala.
            Há uns dois anos, decidi guardar algumas roupas que havia comprado num brechó para a montagem de uma peça teatral. Acomodei, delicadamente, sem muitos vincos, as mais pesadas embaixo, as mais leves em cima.  Ficou ótimo, desobstruiu meu armário pessoal. Entre as roupas guardadas havia fraques, camisas com colarinho alto, tiras de seda para fazer os laços masculinos do século XIX, trajes femininos e uma camisola de voal plissado em tom quase areia com seu chambre de mangas longas e soltas. Lindo!
            Na noite passada, a luz se foi e eu passei a caminhar pela casa no escuro, uma de minhas manias. Às vezes até para trás. Dizem que é bom para o cérebro. O calor estava muito forte. Ao passar pela sala, ouvi os estalos do baú. Não dei bola, afinal já estava acostumada. Continuei a perambular e, de  repente, me dei conta de que estava andando no compasso das batidas. Sim. Não eram os ruídos habituais, eram batidas como se alguém quisesse sair de dentro dele. Adentrei a sala e imediatamente o toca disco passou a emitir uma valsa. Dei dois passos para trás, parei no corredor e a valsa parou. Entrei novamente e quando vi eu dançava ao som e ao compasso daquela bela melodia.
Tentei olhar e ver alguma coisa. Virei-me na direção do baú. Nada, só a valsa  que me embalava. Permaneci no delírio, eu não queria parar. Senti, então, mãos quentes e macias percorrendo meu corpo, minha face, meus cabelos. Braços enlaçaram minha cintura de maneira bem firme, um peito forte e másculo amassou docemente meus seios e um aroma de flor do campo tomou conta de mim. Medo nem passava por minha cabeça. O momento era de plena felicidade. Não! Eu não queria que a música parasse, eu não queria me sentir livre, eu não queria que a luz voltasse.
Ela voltou! Clareou a casa toda. Deixou-me ver canto por canto. Permitiu que eu me enxergasse. Eu vestia a camisola e o chambre! O baú continuava fechado como sempre esteve. Não havia mais música. Na minha memória, aquela sensação de ser amada, de ser desejada. Um leve e maroto sorriso alterou o contorno de minha boca! Tomara que falte luz amanhã!