terça-feira, 31 de agosto de 2010

Dalva

Dalva seria um nome apropriado para ela. Sim, ela surgia do nada, silenciosa e com seus passos leves andava, andava, andava. Dalva era de uma elegância indescritível, vista em poucas pessoas. Seu andar a fazia flutuar, flutuar em círculos como se tivesse um sagrado lugar a alcançar. Era bela! Tez morena e límpida, olhos negros e lânguidos, ombros eretos e suaves, pescoço longo e esguiu. Essa era Dalva.
Às vezes, perambulava pelo parque; às vezes, arrastava o peso do dia, nas ruas do bairro à noite. Sobre o corpo aparentemente perfeito, saias e mais saias, blusas sob blusas, panos e mais panos, todos numa gama de tons pastéis, já encardidos, mas de bom gosto. O braço esquerdo sempre caído, fazendo ritmo com as pernas; o direito, puxando um saco de pano cheio de outros panos. Parecia não cansar, nunca parava.
Seu olhar trazia junto à melancolia um toque de sabedoria. Não fitava ninguém, não falava com ninguém. Parecia uma nuvem entre as árvores, na grama, nas ruas, no asfalto, na vida de todos que por ela passavam.
O que teria acontecido a Dalva? De onde ela vinha? Qual teria sido o seu passado? O que leva um ser humano tão bonito fisicamente a abandonar-se aos braços de uma vida cruel, triste, pobre, malvada?
Dalva, o que aconteceu com teus sonhos? O que te machucou tanto? Por que não voltas à vida?
Vem, Dalva, vem?

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Deixem-me em paz

Ai que coisa bem chata, não consigo caminhar direito. Aquele cara que quis me pegar acabou machucando minha perna direita. Agora estou aqui, andando tipo algumas amigas que passaram pelo mesmo ataque. Pisa o pé esquerdo, pisa de leve o direito! E assim vou. Vou mal! Por que aquelas gurias não olham para cá, poderia pedir que me ajudassem, mas isso seria quase impossível, elas não param de tagarelar. E esse sol está forte hoje! Nem uma aguinha estou encontrando.
Hi! Mas o que é isso? Só o que me faltava: ser perseguida. Essa velha pensa que não estou vendo. Vou tentar andar mais rápido. Ai! não dá, tá doendo muito.Vou me esconder atrás daquela muralha! Ela parou! Ufa, acho que me escapei. Mas como sou burra, ela parou porque eu parei. Que saco! O que ela está querendo comigo? Nem dei bola pra ela.
Ah! Graças a Deus ela mudou o foco, está agora conversando com esse cara de óculos. Hi! Ele está me olhando! Está caminhando na minha direção! E eu não consigo correr. Lá vem ela também! Mas será o pé do Benedito? O que querem comigo? Ui, Ui, ele está se abaixando, está querendo colocar essas mãos nojentas em mim! O que é isso, companheiro? Eu não te fiz nada! Me larga! Ô dona, me ajuda! Pelo menos a senhora só me olhava, mas esse cara tá se passando! Ai! tira essas mãos daí! Não é possível, não respeitam nem quem está machucada. Tá certo, agora vou me aproveitar, tomo impulso quando ele botar suas mãos sujas por baixo de mim. Ó Deus, me dá forças pra eu conseguir. É agora! Vamos asinhas, vamos! Me ajudem! tenho de me livrar desses dois loucos.
Há!Há!Há! Consegui! Agora sim, vou me esconder atrás da casa dos patos, e os monstros não vão mais me achar. Ups! Quase caí no laguinho! Credo, cair nessa água suja seria o fim! Odeio sujeira! Oba! cá cheguei nessa sombra gostosa. Aqueles dois bobalhões acabaram me fazendo um grande favor. Vim pra dentro do cercado dos patos! Aqui estou protegida! Com sorte, até roubo umas comidinhas dos donos da casa!

(Pensamentos de uma pomba ferida, perseguida por mim, claro que na Redenção)

domingo, 15 de agosto de 2010

Duas Meninas

As duas andavam bem juntinhas, carregavam suas mochilas escolares, vestiam calças jean, jaqueta acolchoada de impermeável. Não chovia, o dia estava lindo, e elas conversavam e riam. Seus caminhares pareciam saltitares de gazelas felizes. As trancinhas pretas de uma estavam presas sobre a cabeça, as da outra voavam soltas.
Lá iam ou lá vinham elas da escola? de casa? Não importa! O que mais me chamou a atenção foi a singeleza do panorama. Era uma segunda-feira, todos corriam, os carros buzinavam, uma agitação danada. Eu atucanada, esperando que o sinal abrisse, para variar estava atrasada para meu compromisso, e elas alegres, alheias a tudo, não pareciam preocupar-se, nada abalava aquela felicidade ingênua, aqueles olhares puros, aquela alegria infantil. E eu, então, me procurei: onde está a minha criança, para onde foi a garota sonhadora, o que aconteceu com ela? Não era uma questão de perda, era, sim, uma questão de sono profundo, de troca de prioridades. Comecei a gritar, a chamar-me, dizendo: Acooooooorda! Acoooooooooorda! Buzinas de todo tipo vieram em torno de mim, gritos, mandando andar! Acordei! O sinal abrira! Ri, ri muito, apesar de todos os xingões que tomei. Olhei pelo retrovisor e vi as duas meninas, agora já de costas para mim. Como de costas para mim? Elas nem sabiam da minha existência, eu é que as deixara para trás, mas valeu!
Obrigada minhas lindas estranhas! Prometo que, a cada dia, vou, antes de qualquer coisa, chamar a minha criança. Ela tem de ir onde eu vou, ela tem de mostrar-me as belezas sutis que meus olhos de adulta já não enxergam, o perfume suave que minhas narinas embriagadas pela poluição já não sentem, o toque carinhoso do vento que meu rosto já tinha esquecido, a graça da vida que eu estava tornando tão dura!

domingo, 8 de agosto de 2010

Meu pai

Hoje, após ler a crônica da Martha Medeiros, deu uma vontade enorme de falar sobre meu pai. Há algumas imagens que permanecem e, com certeza, pemanecerão para sempre na minha memória. As lembranças mais remotas que tenho dele são de um homem muito grande, calmo, sério - engraçado, não tenho lembrança de seu sorriso. Podem pensar: Brabo, então! Não, doce, afetuoso e sábio. Meu Deus, como ele sabia coisas e quantas histórias tinha para me contar. O hábito de fazer um soninho após o almoço o acompanhou a vida toda, e isso para mim representava o momento da magia. Deitava ao seu lado e me deliciava com as histórias que contava, algumas verídicas, referentes a diferentes situações de sua marcante passagem neste mundo; outras lidas, tiradas da antiga revista "Seleções" a qual não deixava de comprar e ler semanalmente. Hoje, quando vêm a minha lembrança alguns daqueles relatos, desconfio de que ele enriquecia todos com sua criatividade. Outra visão inesquecível é de vê-lo, através da vidraça de um janelão que mostrava o seu escritório, sentado numa das poltronas do conjunto de couro preto, lendo o jornal do dia. E foi ali, no seu colo, que aprendi as primeiras letras, as primeiras palavras. Hoje, sento numa dessas poltronas, que conservei e da qual não me desfaço, para ler o meu jornal. Às vezes, parava quase que instantaneamente as brincadeiras quando ouvia o som de seu contrabaixo. Sim, o meu pai era contrabaixista de orquestra sinfônica! Sempre que ele parava o trabalho para estudar o seu instrumento, que ficava imponente encostado num dos cantos do quarto de meus pais, eu deitava na cama deles, fechava os olhos, e ouvia, e viajava por lindos campos verdes, por águas límpidas, céu azul, na companhia de muitos animaizinhos. Aquelas notas graves, puxadas com todo o cuidado pelo arco cuidadosamente mantido com o breu, que era guardado num caixinha vazia de pó de arroz da minha mãe, simplesmente me encantavam. Lindo! Tive uma infância regada a arte. À mesa, na hora do almoço e do jantar, o meu lugar era exatamente o oposto ao seu. Vejo-me fitando aquele ser respeitável que não permitia que se falasse muito nesses momentos porque a comida era sagrada e comer exigia um ritual e muita compenetração. Era metódico, sim, se eu tivesse de resumir meu pai a uma palavra, eu diria "metódico". Vejo as fatias de pão em um prato fundo à esquerda de seu, o copo com cerveja à frente, e ele cortando em pedaços pequeninos a carne da refeição.
Passaria o resto do dia, escrevendo sobre meu pai, meu velho pai, que se foi quando um de meus filhos nasceu. E plageando Martha Medeiros, "Pai é um só". Saudade, pai!