quinta-feira, 23 de setembro de 2010

João Maluco

Quais serão os mistérios de nosso cérebro que nos levam a jamais esquecer determinados episódios, certas pessoas. Hoje, não sei por qual motivo, um personagem que acompanhou a minha infância, adolescência e parte de minha vida adulta não sai de meus pensamentos: João Maluco!
Sim era assim que o chamavam. Era conhecido por todos no bairro. Aparentemente não tinha família, não tinha casa, não tinha nada. Vivia a perambular pelas ruas, na maioria das vezes, bêbado. Sobrevivia de esmolas e de pratos de comida que ganhava. Era magro, alto, pele morena e cabelos muito lisos que, não sei se pela sujeira ou por algum produto, estavam sempre grudados à cabeça. Suas roupas sempre eram largas, denotando o tamanho de quem lhe dera, mas as calças nunca tinham o seu tamanho pois era realmente alto. Entre os sapatos e a bainha das calças, destacavam-se aquelas canelas finas e escuras. Não esqueço suas mãos de dedos longos como de um pianista, as unhas muito sujas e compridas.
Quantas vezes, ao ir para o colégio, passava por ele, deitado ainda em alguma calçada onde passara a noite. Quantas vezes o via correndo, dizendo palavrões e xingando os garotos que também corriam depois de gritarem, só para implicar: “João Maluco!” Quantas vezes eu atendia a campainha da casa onde morava com meus pais e lá estava ele para pedir um troquinho, porém sempre ganhava um prato de comida levado por mim. Quantas vezes ficava mal ao vê-lo sendo enxotado porta afora de algum bar ou de algum jardim onde dormia, embriagado. Quantas vezes, já adolescente, eu abria a porta do velho Ford de meu pai pela manhã e dava de cara com ele deitado no banco traseiro, dormindo mais protegido nas noites frias de inverno. Acho até que meu pai não trancava o carro de propósito.
Casei, continuei no bairro, tive meus filhos e João Maluco continuava rondando. E foi assim que ele passou a fazer parte também do crescimento de minhas crianças. Para ele, talvez meus filhos é que fizessem parte da vidinha dele. Passava quase que diariamente por nossa casa e sempre me pedia alguma coisa. Meu filho menor gritava quando ele vinha chegando: “Mãe, o João Maruco vem vindo!” Naquela época ele já não era mais o mesmo, estava velho e não corria atrás dos garotos que gritavam para ele. Talvez não os ouvisse tão bem ou não tivesse mais energia para andar mais ligeiro. Ou quem sabe também já se considerava “maluco”!
Depois de alguns anos, como era comum na época, separei-me de meu marido e muitos domingos ficava sozinha em casa. E foi assim num domingo de Dia das Mães. Meus filhos haviam viajado no sábado para o interior com o pai, e eu somente as veria no final da tarde. Estava eu na janela, pensando, quando, de repente, surge, andando com dificuldade, João Maluco. Fiquei a observá-lo. Ele trazia na mão um botão de rosa branco e um papel também branco. Parou à frente do prédio onde morávamos, olhou para cima, para mim e disse com palavras mal articuladas: ”Feliz Dia das Mães”. Eu agradeci bastante emocionada, achando maravilhoso que ele tivesse me cumprimentado. Mas ele, surpreendendo-me mais ainda, levantou a rosa e disse: ”É para a senhora!” Fiquei perplexa, mas imediatamente desci as escadas do edifício e abri a porta. Lá estava ele com os dois magros braços estendidos me oferecendo com a direita a rosa e com a esquerda um cartão. “A senhora é a melhor mãe que eu conheço!” Agradeci quase chorando, fechei a porta e subi para meu apartamento onde passei em silêncio o resto do dia esperando meus filhos.
Sem nenhuma explicação, João desapareceu. Dias se passaram. Então, meu irmão trouxe-me a notícia: João Maluco havia morrido. Engraçado, isso já faz mais de vinte e cinco anos, e ainda vejo aquele rosto, ouço aquela voz, sinto a presença daquela figura me entregando uma rosa branca, único presente que recebi naquele Dia das Mães.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Coitadinha dela!

A luz do quarto já estava apagada, já era mais de meia-noite. Somente o clarão advindo da televisão ligada fazia aqueles claros e escuro numa penumbra doce e embalante. O som da TV estava no mínimo, e os olhos dela pareciam querer fechar para o descanso da noite. Não se preocupava em desligar o aparelho, acertava o timer e adormecia tranquila, mesmo que estivesse sintonizada em algum programa interessante como o daquela noite. Os sons, os cheiros - borrifava lavanda na cama na hora de deitar - o calor das cobertas, tudo parecia ser parte dela mesma, tamanha a sua relação com aquele momento, naquela peça da casa. Seu quarto era um templo sagrado para ela.
De repente, seus olhos abriram-se como impulsionados por algo diferente. Sentou-se. Ouvira, sim, um ruído estranho, parecia um arranhar de patinhas. Lembrou-se de quando um morcego entrara no seu apartamento, e isso a apavorou! Colocou a TV no "mude". Nada ouviu. Acendeu a luz de cabeceira. Nada! Voltou atrás em suas ações, deitou-se, virou para o lado e puxou a coberta sobre o rosto. Fechou os olhos.
Passados alguns segundos, novamente o ruído. Não, aquilo não era impressão, tinha algum ser além dela naquele quarto. Pensou em pegar o travesseiro e as cobertas e sair dali. Fechar a porta e ir dormir na sala. No dia seguinte, com a luz do dia, tentaria descobrir o que era. Mas na mesma hora, como sempre fazia em momentos de perigo, tomou a decisão de desvendar o mistério. Nunca fora de recuar diante do desconhecido, muito ao contrário, ia atrás.
Acendeu a lâmpada do abajur, tirou o "chapéu" do mesmo, sentou, colocou os chinelos e passou a iluminar atrás da cama, da mesinha de cabeceira, do armário que ficava à direita. Depois procuraria do outro lado. Enquanto isso, a televisão estava sem som, nada poderia atrapalhar aquele momento de investigação. O fio parecia que não alcançaria bem atrás do armário, mas uma esticadinha e ...opa! Lá estava ela, ou ele! Uma senhora barata, bem tratada, num tamanho adulto, asas bem lustrosas, porém lenta como uma velha, tonta como um bêbado em final de festa. Focou a luz nela, e a danada não reagiu como deveria, somente conseguiu andar, dolorosamente, uns dez centímetros.
- Háhá! agora tu vais ver de quem é este aposento! Vou terminar com a tua festa, sua nojenta.
Tirou um dos chinelos e, com pequenos puxõezinhos, trouxe a maldita mais para perto. Acabou fazendo, sem querer, com que ela virasse com as patas para cima. A letargia do bicho era tamanha que nem movimentava mais suas pernas para voltar ao normal.
Maria foi até o quartinho dos fundos, pegou o spray mata-insetos e veio numa fúria como se portasse uma arma de guerra. Apertou o botãozinho do spray e, sem parar, empapou a coitada da barata. Foi ao banheiro, pegou um pedaço de papel higiênico, dobrou-o várias vezes - não suportava a ideia de encostar seus dedos naquele bicho. Entrou no quarto e pegou a coitada, amassou-a fortemente dentro do pacotinho que fez dela com o papel e colocou-a no lixinho do banheiro.
- Pronto! O inimigo está eliminado! Posso voltar pra minha caminha!
Deitou-se e adormeceu em seguida, estava exausta. Nem lembrou que conseguira essa façanha só porque a barata, provavelmente, já tinha passado por dentro daquelas caixinhas com "iscas" que deixam esse bichinhos tontos, envenenados por algum produto apropriado. Maria tinha uma destas em cada peça e as trocava a cada três meses. Com isso não há baratinha que resista! Mas deixa Maria pensar que nos impressionamos com sua astúcia!
- Boa noite, Maria!

domingo, 5 de setembro de 2010

Maria Lúcia

Era inverno, ventava bastante, mas o sol aquecia o rosto envelhecido de Maria Lúcia. O mar estava deslumbrante naquele dia, mostrando a quem quisesse seus babados de renda branca tecidas por mãos sensíveis e delicadas. O mar vestia-se de um verde azulado, não visto há muito tempo. A areia acolhia os pés de Maria Lúcia e a levava por um túnel do tempo em que visualizava os momentos mais lindos do sua vida.
Assim ela ficou por algum tempo sem sequer ouvir ou ver a realidade que a rodeava. Aos poucos, os homens foram-se achegando, sorrateiros e, sem serem notados, jogaram a rede. Maria Lúcia estava agora enredada naquelas cordas de nylon tão bem trançadas. Ajoelhou-se sobre a areia então úmida pela onda que até ali chegara, perdera o equilíbrio. Virada de frente para o mar, não tinha a mínima ideia de quem estava fazendo aquilo com ela, parecia uma brincadeira. Mas de quem? Fazia pouco que desembarcara naquela ilha, não fizera amizades ainda. Mais uma onda veio e, desta vez a molhou mais. Suas pernas e parte do abdômen já sentiam o gelado da água. A onda voltou para o mar e o calor do sol que antes era agradável não mais fazia o que ela esperava. Pensou: " Ele está tão fraco quanto eu!" Tentou se virar, na busca da identificação de seu pescador. Não conseguiu! O vento permanecia e aumentava sua velocidade e volume. Lúcia sentia-se dentro de um furacão. Chegou a pensar que o melhor seria que ele a levasse para onde quisesse, desde que a permitisse esquecer aquela sensação de impotência diante de tudo. Chegou a preferir um desfalecimento a fazer força para se livrar de mais esse ínfortúnio! As ondas continuavam, agora mais fortes. Maria Lúcia tinha até seus longos, quebradiços e desalinhados cabelos molhados. As lágrimas brotavam de seus grandes olhos, misturando-se com o salgado do mar que batia em seu rosto. Maria Lúcia sentia-se cada vez mais fraca; porém, a cada segundo, uma sensação de segurança ia-lhe tomando conta. E assim foi, até realmente perder os sentidos e cair deitada, enrolada na rede de seus sonhos, abraçada por seu amado.
Fora sempre assim! Ela jamais conseguira esquecer aquele amor, aquele homem que a fascinava, mas que nem se dava conta da existência dela. Maria Lúcia envelheceu à espera dele. A sua fixação virou doença e hoje, quando foge da casa em que vive, cuidada por enfermeiros contratados pela família, vem para a beira do mar, onde costumava vir para ver seu amor pescar. Ele não era um pescador, era um rapaz que vinha às vezes da cidade grande. Nem conhecia Maria Lúcia!
- Pronto, vamos levá-la! Agora dormirá tranquila, pensando estar com ele!

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Quero-quero!

Estava aqui, sentada frente ao computador, conferindo meus emails, quando ouvi o grito ou canto, tanto faz, de um quero-quero! Moro num bairro movimentado, muitos ônibus, muitas pessoas, comércio, táxis e outras coisas que compõem os ruídos desse ambiente.
Um quero-quero, me fez estar no campo, olhando as coxilhas do meu estado. É de manhã, mas me vi num entardecer que fazia com que o sol, que se via no céu e no lago, fosse aos poucos desaparencendo dos dois lugares. Num escondia-se atrás da terra, noutro, enfiava-se embaixo dela! Enquanto isso, muitos pássaros voavam, buscando refúgio para a noite, que chegava imponente, vestida de terno negro, como uma linda mulher adentra num salão de festa de gala. E entre as aves a mais exibida parecia ser esse pássaro que caracteriza o nosso rincão: "Quero... quero! quero...quero!" dizia ele, buscando talvez, além de um recôndito cantinho, uma companheira!
Eu também quero! Quantas coisas eu quero! Um carinho, um amor, uma vestido novo, um doce bem doce, um passeio inesquecível, um amigo de verdade, uma companhia agradável, ir à exposição de gados - ninguém quer ir comigo! Não consigo entender este meu fascínio pelas lidas, pelos animais, pela paisagem, pelos sons, pelas cores, pelos cheiros de uma fazenda. Afinal fui criada na cidade e a única vez que curti esse ambiente foi depois dos cinquenta, já como atriz, quando gravei algumas cenas de um seriado. Mas mesmo antes deste trabalho, eu já curtia tudo que se relacionasse com os nossos pagos.
O meu quero-quero de hoje não voltou! Agora nada mais ouço além dos ruídos tradicionais. Será que ele encontrou o que queria? Tomara! Fico feliz quando alguém atinge seus objetivos, realiza seus sonhos, mesmo que os meus demorem mais ou alguns nem se concretizem. Gosto de sonhar, planejar, pensar em ideias novas, mudar! Acho que por isso ouvi o quero-quero dessa manhã, porque me identifico com ele!