segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Adversidades

Abriu a janela e saiu a voar! Como a Izmália, viu uma lua no céu, mas onde estava a lua do mar? Quis bater as asas, porém elas não lhe obedeceram, ou ela não as tinha? 
No delírio de seu sonho, investiu em busca da ajuda de um bando de andorinhas que tentava encontrar um refúgio para a noite. No entanto, elas passaram por ela, subiram acima de onde seus olhos podiam enxergar e sumiram. Foi conquistada pela luz que se acendera na janela de um prédio e para lá induziu sua queda. Chegando perto, a luz se apagou, e ela se perdeu no escuro da noite à procura do mar. Na ânsia de achar aquilo que sua mente desejava, deu um impulso para cima e para a direita e avistou, lá embaixo, uma ilha completamente verde de tantas árvores. E mergulhada na felicidade de estar perto da água onde veria sua lua, fechou os olhos e para lá se foi. 
Foi, foi e, quando seu corpo tocou as folhas frias, estremeceu de medo. Entretanto, um forte e inesperado vento a levou para o alto, para o meio de um vórtex, e deixou-a tonta... tonta de alegria. Todavia, uma força inesperada e estranha para ela a fez cair, Foi caindo, caindo. E, enquanto caía, via lua, estrelas, sol, nuvens. Uma chuva começou a molhar seu rosto e confundiu-se com as lágrimas que jorravam de seus olhos arregalados por um misto de susto, loucura e admiração. 
No jornal do dia seguinte, a manchete falava de uma moça que se atirara do décimo andar, onde morava!

domingo, 18 de novembro de 2012

Bem te vi!?

Bem te vi! Sim era esta frase que ele gritava insistentemente, embora eu não conseguisse descobrir onde ele estava. Às vezes parecia nervoso, sua voz saía trêmula e a repetia, rapidamente, várias vezes. Parecia que me via. Por quê? Por que não se mostrava, por que não dizia outra coisa além desta frase que, para mim, soava como uma belíssima declaração de amor: "Ainda bem que te vi!" Nunca alguém havia me dito que gostava de ter me achado. Nem sempre o som vinha do mesmo lugar, por isso eu pensava que ele se movia talvez para me deixar mais curiosa. E conseguia! Eu não aguentava mais de curiosidade. Seria um vizinho que me enxergara quando fui à janela? Poderia ser o tocador de flauta, ele sabia o quanto eu gostava de ouvi-lo, de repente estava me agradando. Ou será que eu tinha feito algo errado, presenciado pelo meu admirador que dizia: "Bem que eu te vi! Pensando bem, ultimamente, não tenho me comportado muito bem. Mas o que é não se comportar bem? Depende de cada um, e eu não acho que tenha cometido muitos pecados mortais. Não! Ele pode ter me visto em outro momento, em outro lugar! Pode ser um completo estranho que me seguiu e descobriu onde eu morava. Curioso! Depois que comecei a escrever ele não mais gritou. Estará sentindo a minha falta à janela? Mas não quero me levantar, estou com dor nas pernas, caminhei muito hoje pela manhã...não aguento este sono. Preciso dormir um pouco. "Bem te vi!" Opa! Ele veio acordar-me. Lá está ele, lindo, elegante e carinhoso, o meu bem-te-vi.

sábado, 10 de novembro de 2012

Meu vizinho!

O calor queimava as entranhas de nossos corpos. Eram quase nove horas da manhã de um novembro com cara de janeiro. Pegamos o elevador e, abanando-me com o jornal que havia recolhido do tapete na porta de entrada do meu apartamento, comecei a fazer minhas orações como sempre fazia. Sim, era no elevador que agradecia ao Senhor por mais um dia de trabalho. Na realidade, deveria rezar para que o elevador conseguisse chegar ao térreo sem nenhum problema. Ao terminar o sinal da cruz, um barulho horrendo tomou conta da cabina, tudo escureceu e o bendito parou. Esta não era a primeira vez que isso acontecia, mas era a minha primeira vez. Meu companheiro de viagem não dizia uma palavra. Confesso que aquela seria uma bela ocasião para fazer o que sempre me passava pela cabeça cada vez que nos encontrávamos. Nossa relação nunca passara de um "Bom dia", um "Até mais!" E só! Mas nos meus sonhos! Ah! nos meus sonhos! Quanta coisa acontecia entre nós dois! O engraçado é que tudo se passava dentro d'água. Sonho! Tentei dizer alguma coisa, porém senti-me tocada na altura dos seios. Não, tocada não, roçada. Sim, algo roçou meu corpo e foi adiante. Na sequência, ouvi a sirene de emergência. Ele a havia acionado. O silêncio já me incomodava mais do que a escuridão. Parecia que estávamos ali há horas. Então, decidi fazer barulho na tentativa de alguém me ouvir. Comecei a gritar e a sapatear. À medida que batia com os pés no piso do elevador, ouvia um som que lembrava a infância. Aquele barulhinho gostoso e prazeroso de quando saía com meus irmãos a correr pela calçada, pulando nas poças deixadas pela chuva. Como assim? Água dentro do elevador? Impossível! Conclusão: meu lindo, charmoso, tesudo e... medroso vizinho tinha feito xixi no elevador!

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Sonho!

Mãeeeeeeeeeeeeeeê! Eu tive um sonho engraçado, será que foi um pesadelo? Ando tendo uma coceira na cabeça, bem no tampão dela. À noite, quando estou tentando dormir, fico esfregando as unhas e puxando o cabelo até adormecer e esquecê-la. Mas nesta última noite, peguei no sono e, ao acordar, a sensação era de haver passado a noite toda em função da tal coceira. Hein? Já vou contar, mãe! Pois então, eu coçava tanto a cabeça que pedi para alguém olhar o que eu tinha. Não, mãe, acho que não foi você. Não sei quem me examinou. A pessoa, uma mulher, começou a abrir meus cabelos em mechas e dizia: Ai, meu Deus! Credo! O que é isto? Ao mesmo tempo, eu enxergava minha cabeça, meus cabelos repartidos, não sei como. Tudo muito engraçado, esquisito, enxerguei o tampão da minha cabeça! Fiquei surpreso porque havia pequenos ninhos, sim, minúsculos ninhos de passarinhos. Eu apertava a unha do dedão contra o dedo indicador na tentativa de arrancar fora os ninhozinhos, mas em resposta a minha ação surgiam deles miúdos beija-flores, tremendo as asinhas, tentando sair dali em busca de liberdade. Quer dizer, eu acho que queriam liberdade, afinal, não é o que os pássaros fazem quando começam a alçar seus primeiros voos, buscam sair livres pelos céus? O quê, mãe? Não, nada aconteceu depois, eu acordei. Mas essa história não sai dos meus pensamentos. Mãe, você pode me dizer qual o significado disso tudo? Não, eu não quero liberdade, quero ficar aqui com você para sempre. Sede? Ah! Pode ser. Os beija-flores estão sempre bebendo água, e eu estou sempre com sede! Lavar a cabeça? Ai, mãe, minha cabeça é limpinha! Ou não?

domingo, 28 de outubro de 2012

Um amor virtual

E estava chegando a hora! Ele iria adentrar pela porta da casa de Mariana em poucos minutos. Ele vinha de longe, jamais haviam se visto, a não ser por fotos via internet. Este era mais um dos tantos e já comuns casos de amor virtual. Mariana havia entrado num site americano de pessoas solteiras e achara o jovem senhor por ali. Ele era dez anos mais velho do que ela, mas não aparentava a idade que dizia ter. Era elegante, fazendeiro texano e separado. Morava com a mãe, uma senhora idosa já com alguns problemas de saúde. Aquele relacionamento já durava mais de um ano, um ano de longas e constantes conversas. Volta e meia chegava à casa de Mariana uma caixa cheia de objetos que ele dizia ser junk thinks. Mas junto ao que ele dizia ser coisas descartáveis, vinham presentes, muitos. Certa ocasião, ela recebeu um bouquê de flores tão grande que nem tinha em casa um vaso adequado. E assim iam passando os dias, meses, e o coração de cada um pulsando longe, muito distante um do outro. Um dia, ele decidiu que viria visitá-la. Mariana não conseguia mais conter a sua alegria, a sua ansiedade, finalmente estaria nos braços daquele que tanto amava. Ela se arrumou, ajeitou a casa, preparou uma comida especial para o jantar de sua chegada. Mariana estava tão enlouquecida que, quando se dava conta, estava sentada frente ao computador, queria ver se entrara algum email. Em seguida se dava conta e ia fazer outra coisa para se distrair. Na mesma medida da ansiedade de Mariana, o relógio da sala, batia as horas, horas que agora já traziam a ela uma preocupação, afinal ele já devia ter chegado. Por que ela não fora ao aeroporto como queria? Não, ele não deixara, queria ter a sensação do namorado avistando a casa da amada, descendo do táxi, tocando a campainha, abraçando-a pela primeira vez a sós, sem espectadores. Ela não tinha mais paradeiro, sentava, levantava, caminhava, espiava pela janela da sala, abria a geladeira, beliscava alguma coisa. E nada. Num impulso, ligou o computador, e acessou a caixa de entrada das mensagens. Leu algumas de pessoas conhecidas e, entre elas, havia uma de um Pastor. Mariana clicou, e começou a ler. Lia e, assim como seus olhos corriam pelas linhas, deles corriam, aos montes, lágrimas, lágrimas de uma grande tristeza. A expectativa de ser feliz ao lado do amado desconhecido morria ali. O email era do Pastor da Igreja frequentada pela família, e havia cabido a ele dar a notícia de que Bob, havia tido um derrame e não se encontrava mais entre os vivos. Os filhos de Mariana nunca acreditaram neste sujeito que escrevia palavras lindas para a mãe deles, sempre acharam que, na verdade, Bob era um rapazola se distraindo com uma brasileira. Já se passaram mais de dez anos e Mariana até hoje tem dúvidas sobre a existência de Bob.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Descobrindo a vida

Naquele dia, a porta estava aberta. Ela andou mais lentamente do que de costume, não sei se por receio ou por cautela. Foi! Foi para a rua e, assim que se viu fora de casa, deu-se conta de que tudo era novo para ela. Por que nunca a tinham levado além daquela porta? Passo a passo foi distanciando-se, batendo nas pessoas, indo sem destino, sem futuro e sem passado. Sua vida começava agora. O som dos carros a inquietava, mas ela tentava não se perturbar. Virava a cabeça e seguia seu instinto. Viu galinhas rodando dentro de uma caixa envidraçada.Chegou perto e sentiu o calor e o cheiro gostoso. Deu-lhe fome. Mas como se podia comer aquilo.Na casa dela nunca vira algo parecido. Resolveu seguir adiante. Quando se deu conta, seus pés pisavam em algo úmido e geladinho, ouviu gritos, parecia que a xingavam. Olhou para trás e viu a marca de suas pisadas na calçada, e homens começando a correr atrás dela. Correu, correu muito. Atravessou ruas no meio de carros, que não paravam, dobrou esquinas desconhecidas, passou entre pernas nuas e pernas vestidas, sentiu o vento em seus olhos e seu nariz gelou. Como vou voltar? Ela já não sabia voltar, estava perdida na estranha cidade. Viu árvores, deitou-se embaixo de uma delas, aproveitou a sombra. O sol já estava forte agora. Fechou os olhos e ali ficou sem saber o que fazer. Ouviu ruídos por perto, chegaram perto dela e sem trocar qualquer comunicação saiu andando ao lado deles, dos que faziam barulho, dos que faziam festa, dos que derrubavam latas, dos que tomavam água do lago, dos que se atiravam a rolar na grama. Ela finalmente descobriu a vida, finalmente conheceu os seus semelhantes, finalmente se encontrou. Para casa nunca mais voltou. Só corriam lágrimas de seus olhinhos quando lembrava de seus filhotes. Eram dois, um igual a ela, outro igual ao cachorro da vizinha, aquele safadinho do andar de cima, malcriado e fedorento.

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Infinita descida!

Ela desceu as escadas no escuro, no silêncio! Não sabia o que iria encontrar lá. Tinha a sensação de que a estavam empurrando. Não se sentia comandando seus atos. Terminou o primeiro lance e, como se alguém tivesse puxado seus cabelos, ela parou. Ali ficou por alguns segundos, segundos que lhe pareciam horas. Nesse tempo muitas e diferentes sensações foram vivenciadas por ela. O medo do desconhecido, o frio da falta de companhia, a instabilidade de suas frágeis pernas, o tremor de suas mãos, o ruído dos pequenos insetos que habitavam aquele lugar que tantas vezes lhe atiçara a curiosidade. De repente, mais um lance de escadas. Quantos lances teria ainda? Desceria muitos mais? Nunca ouvira falar do quão fundo estava este esconderijo. Esconderijo? Por que pensava que fosse um esconderijo? Estariam lá, guardados segredos de sua família? Mas jamais soubera que a família tivesse segredos. Não, não eram segredos! Por que era empurrada? Eram tantos questionamentos quantos eram os degraus, tudo interminável. Agora o frio cortava-lhe a pele. Um cheiro forte não identificado penetrava-lhe as narinas. Por que não havia um interruptor de luz? Não tinham feito instalação elétrica ali? Não imaginaram que um dia alguém iria querer descer? Mas ela não queria descer! Fizeram-na abrir a porta e ir, ir, ir. Foi e seus pés tocaram a água. Aos poucos foi ficando mais fundo e quando se deu conta estava nadando. À medida que andava sentia aquele líquido aparecendo uma luz que veio lá do infinito e acabou iluminando tudo. Será que foi a luz que veio, ou ela que à luz chegou? Não importava! O lugar era lindo! Estaria ela chegando ao paraíso? Paraíso? Se era isso, ela estava morta. Como? Morto não sente medo, não se sente inseguro, não treme as mãos, não ouve insetos, não nada! Nada? De nadar? Sim ela estava nadando! Morto nada! Há!Há!há! Delícia!

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Ingógnita

Agora dera pra isso: deitar-se no meio do dia, podia ser pela manhã ou à tarde. Sentia-se cansada, deitava-se. Imagina se sua mãe lhe visse. Dona Maria jamais se permitira esticar-se na cama durante o dia. Dizia que era coisa de preguiçoso. Falava mal de quem costumava refestelar-se no leito sem que fosse noite. Mas ela não! Tomava aquela atitude como se fosse com o intuito de desaforo, não dava atenção a ninguém. Hoje ela estava lá, deitada, em seu quarto, de olhos fechados. O sol batia-lhe no rosto, era o sol do meio da tarde. Daqui a pouco ele já iria embora. Mas por enquanto, pelo semblante dela, estava lhe trazendo prazer, muito prazer. Dava-lhe ao rosto um ar de riso, os lábios era umedecido de vez em quando pela ponta da língua que passava pelo lábio inferior, depois pelo superior como se acariciasse algo precioso. O que estaria se passando naquela cabecinha. Lembranças dos tempos em que era criança e corria pelas calçadas ao sol? Não! Devia estar pensando nas carícias do seu único, primeiro, último e eterno amor, aquele de sua adolescência e que jamais voltara. Mas podia estar pensando nas peripécias que aprontava com a professora de piano. Sim, adorava esconder o livro de exercícios de solfejo, dó, ré, mi; dó, mi, sol! Era muito chato. Ela não gostava de ficar cantando as notas, não via sentido nisso. Não, aquele sorriso era de quando roubou a flor que sua irmã recebera do namorado, namorado. Ela não tinha namorado! Ficara esperando por seu amado uma vida inteira. Já é noite em seu quarto. Não se pode mais ver seu rosto, seu sorriso. O que ela estará pensando agora? Alguém me diz!

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Confusas sensações

A sensação era muito estranha. Estava parada ali já fazia algum tempo. Deitada, olhos fechados, imóvel. Meus músculos estavam tensos, porém não havia razão para isso, suponho. Era o final. Vem a minha memória outros dias que passara pela mesma situação, mas desta vez era diferente. A boca, a boca tinha de se manter aberta. Parecia que me colocavam arreios, sim, sentia-me como um cavalo que, apesar de sua força e tamanho, permanecia impotente diante daquelas pequenas mãos. Sim, pareciam mãos delicadas, mas eram fortes. Eu sou um cavalo? Se sou, por que não consigo dar um jeito nisso tudo. Minhas pernas estão começando a ficar inquietas. Mexo os dedos dos pés, mas aqueles tênis! Por que calcei tênis hoje? É tão difícil tirá-los. Vou tentar descontrair. Isso, está melhor! Respiro fundo. Tento abrir os olhos, mas a luz é muito forte. A tensão volta, baixo a parte inferior da perna direita, tirando-a da cama, e a sacudo para frente e para trás. Mas se sou um cavalo como coloquei os tênis? Não! Não são tênis, são ferros, ferraram meus cascos! E este peso no meu peito?! O que colocaram sobre ele? Mas se sou este cavalo como consigo estar deitada de costas? Nunca vi um cavalo deitar-se com a barriga para cima, mas é assim que estou. Esse negócio no meu peito parece emitir um vibração, leve, porém está ligado. Meu Deus, tem algo ligado sobre mim! As mãozinhas estão apertando um outro metal em minha boca, aberta ainda. O barulho, que barulho amedrontador. Todavia se sou um cavalo, sou forte, não preciso ter medo deste barulho, porém se for uma serra? Estarei eu num matadouro? Vão me cortar em pedacinhos? Não, não pode ser! Ouço uma voz: "Está quase pronto!" O quê? O que está quase pronto? Coloco a perna direita para cima da cama, ou será a pata? Retiram o peso de meu peito, mas minhas costas doem de tanto ficar na mesma posição. E agora? Por que esta água toda na minha boca? Vão me matar por afogamento? Ouço a mesma voz novamente: "Pronto, pode cuspir!" Abro os olhos, a cama está virando cadeira, estou na dentista! (Para a minha dentista, Larissa Kochhann)

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Carlota

Todos os dias Carlota saía, pegava o ônibus, ia até o centro da cidade, andava até o prédio onde ficava a empresa em cujo setor de marketing ela trabalhava. Almoçava no pequeno restaurante da esquina, junto com alguns colegas, nem sempre os mesmos, mas só! No final do expediente, tomava o ônibus de volta, chegava ao apartamento onde morava com uma velha tia por parte de pai, jantavam, assistiam a algum programa de televisão e iam dormir. Carlota, só! Era sempre o mesmo, igualzinho, só o que mudava era o tempo, umas vezes chovia, outras fazia sol, havia o inverno e os dias quentes do verão. O tempo ia passando, Carlota envelhecendo. Cuidava da tia, do trabalho, da casa, das contas. Ninguém cuidava dela. Um dia Carlota foi avisada de que não precisaria mais trabalhar. Seu tempo havia expirado, e ela agora podia gozar de dias livres, da aposentadoria. Carlota voltou para casa. Não sabia nem pensar diferente, tinha sido sempre tudo tão igual. Ficou sem sair por dois meses, nem pela janela sabia olhar, apreciar. Não se dava conta de que havia vida lá fora. Mas continuavam vivas ela e sua tia. Mais dois meses se passaram, sua tia morreu. Carlota continuava só. Passou a viver a vida das personagens das novelas a que assistia. Vestia-se igual a uma, caminhava como outra, fazia escolhas semelhantes a de mais outra. Até suas refeições eram programadas conforme o que os personagens comiam em uma e outra cena. Uma dia, numa determinada cena, a protagonista deu um basta à maneira como encarava sua existência, e Carlota fez o mesmo. Baixou de cima do roupeiro uma pequena mala, colocou algumas roupas dentro, pegou a bolsa de mão, levantou o colchão, recolheu todo o dinheiro que ali guardava há muitos anos, encheu a bolsa com as notas amassadas e saiu. Saiu pelas ruas, pelas avenidas,pelas estradas, pela vida! Carlota, ninguém precisa aprender a viver. A vida se vive!Seja feliz!

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Inspiração da Lua Cheia

A Lua nua passeia pela rua Eu em busca do teu eu Me enterro nesta terra iluminada Desesperada por de ti nada saber Oh! Lua que não é só tua Vem me buscar aqui na minha rua E me leva para onde eu encontre um belo conde que me faça voltar a passear de bonde Sentada à janela Olhando a Lua bela Até que ela suma Tentando fugir do sol Que a ela transforma num rol De saudade e maldade Sem nenhuma felicidade! Oh! Lua nua da minha rua!

sábado, 1 de setembro de 2012

Dormir?!

O dia estava iluminado. Já não estava tão frio, e era gostoso sair da aula de hidroginástica, ter cansado meu corpo, tomado um demorado banho, lavado a cabeça. Sentia-me limpa para assimilar tudo que o novo dia me presenteava. Comecei a atravessar a rua para chegar ao meu carro quando avistei, por entre os vidros que havia alguém, meio abaixado, atrás, bem em frete à porta do motorista. Diminuí o passo, pensei em voltar e aguardar até que nada mais pudesse me ameaçar. Sim era assim que sempre agia. Nos dias de hoje, quanto mais cautela e desconfiança, mais segurança. Porém, não fiz nada disso: não parei, não voltei, não aguardei; ao contrário: continuei caminhando em linha horizontal, olhando firme para aquilo que me assustara. estava tão absorta no que fazia que nem ouvi ou vi umcarro que, não só freiou e desviou de mim, assim como levei umas boas xingadas, daqueles tipo: "Ô, velha, tá surda?" Surpreendi-me, é claro, ma segui o meu caminho. Para poder verificar o que realmente estava acontecendo, decidi abrir o porta-malas, assim poderia dar uma espiada. Era um rapaz, mal vestido, um pouco sujo, não parecia estar drogado ou bêbado. Ele ajeitava algumas coisas no chão, bem rente à parede de um prédio que fazia divisa com a calçada. Sem medo, fui até a porta do carro, como a calçada era estreita, pedi-lhe licença, o que o levou logo a recolher o que estava sacudindo. Ele me deu um lindo sorriso e disse: "Desculpa". Eu, retribuindo o sorriso: "Não foi nada!" Sentei-me ao volante, liguei o carro e, abrindo um pouco o vidro, olhei novamente para ele. Foi aí que vi que já havia estendida no chão uma espécie de folha de papelão bem grosso, esse de caixa. Ele já se deitava e abanava por cima de seu corpo uma cobertor velho, azul escuro. Arranquei e aos poucos aquela imagem foi sumindo da minha visão. Eram dez e meia da manhã!

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Aquela voz!

Ele falava firme. Nem um tremorzinho. Sua voz era aveludada e grave. Ouvi-lo era um bálsamo para qualquer doença, física ou emocional. Construía suas frases dentro de uma sintaxe perfeita e sabia argumentar sobre todos os assuntos. No meio de uma conversa fazia digressões que demonstravam a pessoa culta que era. Fosse pela internet ou pelo telefone o seu jeito de colocar as ideias passava a segurança que tinha e que, com certeza, podia distribuir. Lembro que, uma vez, quando falava sobre um jogo de futebol, assunto que não me dizia muito, a partir do comentário sobre um passe de um dos jogadores, ele fez uma analogia com as mulheres que me deixou louca. Somente um homem de muita sensibilidade conseguiria enxergar tal relação. Aquilo me encantou! Outra vez, ao analisar um livro que acabara de ler, disse-me que o escritor usava as palavras como um pintor jogava as cores numa tela. Confesso que me perdi um pouco, afinal, o que ele queria dizer? O autor era bom ou ruim? Claro que fiquei quieta e continuei ouvindo. Não poderia decepcioná-lo com minha ignorância. Nunca nos encontramos, nunca revelamos detalhes de nossas vidas como a idade, por exemplo. Sabia que a cabeça dele já estava se adornando com o brilho de gotas de orvalho que indicavam a maturidade. Mas aquela voz denotava um cérebro infinitamente elástico, jovem, musculoso, perfeito. Hoje vamos nos encontrar. Desde cedo estou feliz, exatamente como dizia o pequeno príncipe na obra de Saint Exupery. Como é incrível o ser humano! A emoção está presente em tudo e em todos os momentos, é só observar. Agora olho-me ao espelho e vejo as marcas da minha idade. Não tenho como escondê-las, nem quero. Passo o pó, ajeito as sobrancelhas e escolho o baton: vermelho ou rosa? Laranja, sim, o laranja combina com meus cabelos. Pego o carro, rodo a cidade até o local do encontro. Desembarco, dirijo-me ao centro do parque e sento-me no banco onde havíamos combinado de estar. Ele ainda não chegara. Por que eu sou tão pontual? De repente, ouço, atrás de mim, um som conhecido há alguns meses. Virei-me e o vi. Vinha sorridente, dizendo um poema de Drummond, com um buquê de flores do campo numa mão e, na outra, uma bengala. Seus joelhos não mais aguentavam o peso dos anos!

terça-feira, 21 de agosto de 2012

As pernas

Todas as noites quando ia fechar as vidraças da sala antes de ir dormir, ficava alguns minutos parada, observando cada uma das janelas dos demais apartamentos que formavam aquele cenário. Algumas ainda iluminadas, outras já no escuro. Mas tinha uma que sempre me chamava a atenção. Não era muito perto, e eu não tinha um binóculo, o que era lamentável. Porém aquele sofá vermelho, aqueles pernas gordas apoiadas numa banqueta, realmente me impressionavam. Dia após dia, aliás, noite após noite, lá estava ela. Ela? Será que aquelas abundâncias pertenciam a uma mulher? Poderiam ser de um homem também, por que não? Não adiantava mudar de ângulo, não conseguia ver além delas. O curioso é que tinha a sensação de que elas não saíam dali. Houve uma noite, uma daquelas em que tenho insônia que caminhava no escuro pelo apartamento, já eram umas três horas da madrugada, qual não foi a minha surpresa, olhei para a rua, desci os olhos para o sexto andar do prédio de trás e lá estavam as brancas e roliças coxas. Elas não descansavam, ou melhor, elas só descansavam. O tempo foi passando, e eu já buscava por elas quando chegava à janela. Estava familiarizado com as desconhecidas, gostava delas, tinha vontade de tocá-las, ver de quem eram. Colocava-me a imaginá-las, levantando, caminhando. Qual seria o tamanho do corpo que elas sustentavam? Andariam elas firmes ou mancavam? Lisinhas eram, pelos menos à distância pareciam. Eram claras muito claras! E os pezinhos, sim do meu ponto do vista eram muito pequenos em comparação a tudo que amparavam. Hoje estou naquelas noites, a Lua está cheia, a claridade toma conta de todas as frestas, e eu ando de um lado para o outro. Olho através dos vidros da sala e não vejo as minhas companheiras. Tudo está escuro. A janela está fechada. Será que elas voltarão amanhã?

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Ao som de um tango

A casa era um agito só. Nada lembrava o casarão calmo e silencioso de sempre. As empregadas corriam de um lado para o outro. As crianças passavam correndo pelos aposentos, dando gritinhos indefiníveis. Gente chegava com malas, caminhonetes traziam bebidas e comidas. Garçons já preparavam as mesas com toalhas brancas no jardim. Flores por todos os lados. Os cachorros latiam lá no pátio dos fundos enquanto dentro um tango tomava conta do ambiente. Era o noivo. Ele amava tangos, era um viciado na dança. Depois que sua primeira mulher se foi, ainda muito moça, sem ter-lhe dado filhos, ele espantou a tristeza e a solidão, frequentando festas e bailes. E foi num destes dias que conheceu Rita, a moça de belas e ágeis pernas, de cintura fina e corpo perfeito. Ela dançava muito bem. E isso o encantou. Em pouco tempo, tornaram-se um par constante. A vida se encarregou de deixar que os laços deles fossem se reforçando, e ele quis casar com ela. Rico, bonito, elegante e bom dançarino. Pretendente igual não existia. Tudo para o evento foi preparado, os convites entregues, um novo enxoval comprado para a casa, mais serventes contratados e todos orientados para, agora, ter Rita como patroa. A tardinha chegou, os convidados desceram ao jardim em trajes de recepção, o vigário da Igreja local se postou junto ao altar engendrado. Embaixo do caramanchão de rosas uma orquestra de câmara tocava... tangos. O noivo... lindo! O tempo foi passando, e a ansiedade tomou conta de todos. A noite inundou todos os cantos, a música foi silenciando, os convidados se retirando, e o noivo trancou-se no seu quarto. Completo silêncio, total escuridão. Bem longe dali, em outra cidade, em outra festa, os cabelos de Rita voavam ao som de um... tango.

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Processo Metamorfósico

O calor cobre a minha cidade, a minha rua, o meu apartamento. Tudo parece pegar fogo. Esta temperatura não era esperada nesta época do ano. Tudo parece estar sofrendo uma metamorfose, mas eu continuo aqui, o mesmo, o chato, o cheio de manias, o que não aguenta que mexam numa mínima coisa que me pertence. Não posso ver um quadro torto, o som além de um volume normal para o ouvido do ser humano me leva à irritação. Sempre vivi assim, nunca achei que me fazia mal. Mas este calor úmido, nojento, melequento está fazendo com que não me movimente para não piorar a sensação de que vou me derreter. Só o que posso fazer é pensar e estou pensando em mim porque, se pensar em outra pessoa, sei que vou acabar me enervando pois acharei defeitos que me atucanam. Porém, ao meditar sobre mim mesmo, dou-me conta de minhas manias insuportáveis, anti-sociais, devastadoras. E o calor parece aumentar! Será realmente a temperatura ou o meu corpo reagindo contra mim mesmo? Ai, quanto está me incomodando esta constatação de que posso não ser o que pensava ser. Isto está me corroendo, terminando comigo. Olho para meus pés, onde estão os dedos, as unhas? Olho para meus braços, vejo gotas do que restou de minhas mãos, pingando no tapete vermelho da sala. Vou ao banheiro, olho-me ao espelho e ainda consigo ver um olho escorrendo pelo rosto enquanto pinga a última gota da orelha esquerda derretida. Saio andando pelo corredor e vejo-me inundando o chão, penetrando nas frestas, preenchendo cantinhos...e, neste processo de identificação metamorfósica climática, dou-me conta: eu não sou mais!

sábado, 4 de agosto de 2012

Lá e cá!

Todos os dias, ela percorria aquele caminho. Fizesse sol, chuva, frio ou calor insuportável, lá ia ela para lá e para cá. Nada mudava, nada acontecia, nem as casas eram reformadas para dar aos olhos de quem por ali andava uma alegria. Só o que se modificava era o humor dela, o cansaço da mesmice sem fim. Nem as coisas que ela carregava se transformavam ou passavam a pesar mais ou menos. Quando chegava lá, ouvia, falava, escrevia, lia sempre as histórias sem graças. Quando chegava cá, comia, dormia, acordava, falava, ouvia, nada de diferente. E seus pais não se preocupavam com ela, era a mocinha perfeita, a que não dava incomodações. Não se preocupavam nem lhe davam a atenção que merecia. Ela parecia não se importar. Ninguém sabia que estava cansada de sua vidinha. Um dia, no meio do caminho, apareceu, em sua frente, um serzinho, dócil, frágil, delicado, amoroso que lhe pegou as mãos, beijou seus lábios, acariciou seus cabelos, disse-lhes as palavras com que ela sempre sonhara. E a partir daquele momento, ela nunca mais foi pra lá e para cá. Com ele ascendeu e transformou-se na mais linda estrela, a que jamais se apaga e a que se vê dia e noite, uma vez lá, outra vez cá.

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Finalmente!

Finalmente toquei em você. Há quantos anos venho acompanhando o seu desenvolvimento, as suas brigas com o tempo, os seus esforços em se manter firme e com essa força interior de dar inveja a qualquer um. Quantas vezes me postei a observar seu corpo tomando forma, seus braços alongados come se pudesse atingir até a mais longe das estrelas. Este teu tom moreno, a cada dia, me seduz mais. Em muitas ocasiões me peguei a sonhar com o momento de agora . Entrava em delírio só de pensar em sentir o calor de tua pele, o toque delicado de tuas unhas, ora verdes, ora amarelas, ora curtinhas, ora viçosas e macias. Eu, na minha vidinha meio sem graça,crescia também, meu corpo se tornava musculoso e havia épocas em que eu tentava imitar você para ver se me notava, o que, na maioria das vezes, não acontecia. No entanto, para mais ninguém deitava seu olhar também. O movimento de carros e ônibus por perto de nós acabava atrapalhando algum desejo maior de falar com você. Temia que não me ouvisse ou que usasse os ruídos para disfarçar uma possível relutância a nossa aproximação. Até pouco tempo tinha a certeza de que nossos corpos jamais se tocariam, jamais trocariam calor, frio ou arrepios. Mas, quando acordei hoje pela manhã, vi que este seria o meu dia de felicidade. O vento da noite havia me ajudado e, no meio da tarde, nossas folhinhas se encostaram e falta pouco para nossos galhos se entrelaçarem. A partir de agora, apesar de meus maus presságios, nunca mais nos separaremos. Esse nosso bolinar está colocando um ar de alegria em você. As pessoas que, embaixo de nós estão passando estão nos olhando, estão comentando, estão gostando. E acabei de ouvir daquela criança de bonezinho verde, de mãos dadas com seu pai: "Pai, aquelas árvores formaram uma ponte, e os carros parecem estar passando embaixo de um túnel, que massa!" Que massa? Eu não me lembro de ter alguma informação de que estão fazendo massa de alguma parte de nós! E você, já ouviu falar sobre esta história? Beijo, minha amada!

domingo, 29 de julho de 2012

A hora do rosa

O quarto foi inundado de uma luz rosa. Tudo mudara de tonalidade, e a menina que há dias não saía da cama teve seu rosto iluminado com o tom rosado que trazia a ela uma fisionomia saudável. Ela se levantou, andou em ritmo de valsa até a penteadeira, sentou-se na banqueta e começou a sorrir ao ver-se rosada no espelho. Pegou o pente e passou nos cabelos, tirando-lhes os nós causados pelo esfregar no travesseiro. Foi até o guarda-roupas e de lá tirou o vestido de renda branco. Vestiu-o e, quando foi olhar-se novamente no espelho, tudo já havia mudado de cor. Deixou cair ao longo do corpo os braços, baixou a cabeça e passo a passo chegou à janela de onde, agora se via o céu ficando azul escuro pois o sol já tinha ido se deitar. Virou-se, olhou para o leito, deitou-se e uma lágrima correu pelo canto do olho, molhando a fronha...rosa.

sábado, 28 de julho de 2012

Uma relação!

A vida com ela era mais gostosa. Era isso que ele dizia sempre. Não conseguia viver sem ela. Quando ia à rua, levava a moça junto, ao ficar sentado no sofá, assistindo a algum programa na televisão, era ela que lhe fazia companhia. Ela jamais lhe negava alguma coisa, algum carinho, alguma palavra de amor, de incentivo. No dia em que se viram pela primeira vez, bateram olho no olho, suas mãos se tocaram sem querer, as falas se confundiram, na ansiedade do primeiro encontro. Tudo a partir dali foi diferente na vida de cada um. Não havia mais um, e sim sempre dois. Ela era do tipo silenciosa, fazia tudo sem barulho, não gostava de que falassem alto perto dela. O rádio nunca ligava e disfarçava o quanto odiava o som do futebol que ele não deixava de ouvir, ou mesmo assistir na televisão. Ele jamais notara que aquilo não agradava a ela. Nestes momentos, ela fazia tarefas da casa em outros cômodos, muitas vezes, saía para fazer as compras da casa. Ele, em princípio, não desgostava de nada que ela fizesse. Um dia, ele chegou mais cedo em casa e a procurou, chamou, vasculhou todos os cantos. Nada. Ela não estava! Ele sentou e aguardou, aguardou, aguardou. O tempo passou, e ele desistiu. Desistiu de esperar, de ficar ali parado, de visualizar a entrada de sua amada pela porta da frente. Arrumou uma mala com tudo o que mais precisava e gostava, saiu pela porta afora. Ela, depois de mais algum tempo, chegou, não o chamou, não o procurou, não o esperou. Ele nunca mais voltou.

domingo, 22 de julho de 2012

Nem sempre o fim é o fim

As paredes estavam mofadas e úmidas. Há muito nada de alegria aparecia por ali. Aquele já fora um lugar onde se ouviam canções e risadas constantes. Já fora um lugar onde se viam crianças brincando, adultos felizes e idosos limpos e cheirosos. Aos poucos, foram todos embora dali, buscavam alcançar outros horizontes, em busca de mais felicidade. O lugar foi se modificando ao som da melodia e do ritmo da natureza. O vento, a chuva, o calor, a poeira foram cavocando o seu espaço no chão frio e sujo. Nas paredes, outrora limpas e bem pintadas, agora se via o reboco desboroando. O telhado cheio de limo ia abrindo frestas para que a chuva, o sol, a brisa por elas penetrassem e lá morressem como o próprio lugar. Um dia, em meio àquele lúgubre ambiente, um raminho verdinho apareceu. E começou a crescer. Cresceu e tomou conta de tudo. Era a vida que voltava, era a alegria que de uma outra forma tomava conta do lugar. Agora se ouvia novamente a melodia da alegria. E, como por milagre, somou-se a ela o canto dos pássaros que ali encontraram espaço para construir seus ninhos e deles novas vidas se criaram! Um dia, quem sabe, um ser humano volte, uma criança venha brincar, um idoso se alegre na esperança de que o vislumbre do fim seja, na verdade, o início de um novo caminho.

sábado, 21 de julho de 2012

Vida lá fora

Eles riam e gritavam! Divertiam-se, achava ela. Ouvia suas gargalhadas, suas vozes altas confundindo-se. Eram vozes femininas, masculinas. Às vezes, quase estéricas as risadas. Em meio ao sons humanos emitidos, latidos de um cachorro nervoso. Essa mistura a deixava ansiosa. Não aguentava mais ficar ali, sozinha, ouvindo a vida lá fora, sem saber exatamente o que acontecia. Agora cantavam parabéns a você. De quem seria o aniversário? Essa agonia! Palmas, gritos, música. Sim havia um grupo de sambistas, era samba o ritmo. Ela ali, sentada em frente à televisão, mudando de canal, irritando-se a cada programa que decidia ver. E o cachorro agora latia mais, sem parar, como se fosse um relógio: au, au, au, au... Ela se levantou, abriu a porta, tomou o elevador, saiu para rua e começou a caminhar no meio daquele povo que não conhecia. Sorria e cumprimentava todos como se fossem amigos há muito tempo. Parou diante do bar onde os músicos tocavam e com eles cantou. Seguiu, dobrou a primeira esquina, caminhou ao som do "relógio" e, sem que alguém notasse, abriu o portão de onde o cão saiu. Saiu, avançando em todos, mordendo alguns, arrancando a roupa de vários, até que a alegria se transformou em horror, em tragédia. Em poucos minutos as risadas viraram gritos de desespero. Ela voltou para casa, deitou em sua cama e dormiu, afinal, finalmente, fez-se silêncio lá fora.

domingo, 15 de julho de 2012

Dormir? Pra quê?

Aquele sono não abandonava Maria. Sentava para almoçar, abria a boca pra colocar a comida e fechava os olhos. Queria escrever suas histórias, de um minuto para o outro, cerrava as pálpebras. Começava a assistir a um filme ou programa de televisão e, imediatamente, os cílios atrapalhavam a visão pois já não conseguia manter seus olhos abertos. Até mesmo, ao dirigir, que perigo, dava-se conta de que o tal do sono quase a fazia cometer alguma imprudência mais séria. No entanto, em nenhuma destas situações, Maria se deixava dominar por ele. Sempre fora uma pessoa muito comprometida e não se permitia descansar, tinha de produzir. Sim, estava sempre inventando, tinha uma inquietação criativa. Mesmo em frente à televisão ia aproveitando tudo que via para acumular ideias. Um dia, a sonolência era tanta que não pôde se manter acordada. Adormeceu profundamente e, por algum tempo, não se ouviu sua voz, nem seus passos, nem o teclar do seu "note". Ela dormia, ela descansava. Engano! Imenso engano! Ao despertar, deu-se conta de que o sonho que tivera era tão lindo que, a partir daquele dia, voltou a dormir e não mais acordou.

segunda-feira, 2 de julho de 2012

A melhor saída

Ela caminhava de um lado para outro. Sabia o que a esperava. Tinha sido assim nos últimos meses, nos últimos anos, a sua vida toda. As noites de lua cheia! Levou um tempo a se dar conta de que a sua insônia estava diretamente relacionada a ela, a Lua. Tantas conversas existem em torno da influência dela que não seria estranha essa ligação. No entanto, durante muitos anos fez diferentes e inovadores tratamentos para dormir em paz. Mas grande coisa não dormir somente algumas noites por mês? E foi assim que desistiu de remédios e terapias alternativas e resolveu encarar o silêncio daquelas noites, as caminhadas à cozinha, as refeições extras, os lençóis bagunçados e quentes de tanto se rolar. Ao entardecer, havia lido no jornal que se iniciariam as suas jornadas lunáticas. Preparava-se psicologicamente para enfrentar tudo de novo. Era tudo o que não queria, afinal estava em uma época de muitos trabalhos e precisava descansar. Foi até o quarto, olhou para a cama e tomou uma decisão: vou dançar a noite inteira! Ligou o toca-discos, selecionou os melhores lps, colocou o primeiro e, passo a passo, saiu pela casa, rodopiando, sacudindo os quadris, girando a cabeça, até que, apagaram-se todas as luzes. Sim, no bairro em que morava ainda faltava energia elétrica de vez em quando. Foi tateando as paredes, entrou no quarto, chegou à cama e deitou-se com os olhos fechados. Por que, quando está escuro, fechamos os olhos? Ouviu um ruído e abriu-os. Que bom que a Lua estava cheia, tudo estava iluminado. Levantou, começou a cantar e dançou à luz da sua amiga até o dia clarear quando foi dormir!

terça-feira, 26 de junho de 2012

Um verdadeiro amor

Nada a fazia desistir de um dia encontrar o verdadeiro amor. O tempo passava, os dias, às vezes, pareciam ter mais de vinte e quatro horas. Mas ela continuava a sua vidinha sem reclamar, sem se queixar das dores que começavam, de vez em quando, a fazer com que ela se desse conta de que tinha joelhos, outras vezes, notava a presença das costas no seu corpo cada vez mais cansado. Havia ocasiões em que se botava a caminhar pela cidade, como se isso a levasse a encontrá-lo. Ele, aquele que lhe daria tudo que ela merecia, que lhe faria todo o carinho do mundo, que a encheria de mimos como ela sempre fizera com todos que a cercavam. Outras vezes fazia visitas em diferentes Igrejas, onde rezava para todos os santos, pedindo sempre o mesmo: um grande amor. O espelho já não era mais seu amigo, não gostava de olhar-se nele. Parecia que estava velho, cheio de marcas que enfeiavam seu rosto. Preferia imaginar-se. Andava, apesar dos pesares físicos e emocionais, sempre de cabeça em pé. Não se deixava abalar muito. Afastava os maus pensamentos e procurava manter o bom-humor. Quando encontrava as amigas de outras épocas não conseguia controlar-se, acabava fazendo uma comparação do número de rugas dos rostos, do tamanho da papada do pescoço, da altura dos seios, do tamanho da barriga, enfim, tentava considerar-se em melhor estado. Numa noite, quando a chuva caía lá fora sem parar, e ela não pregava o sono, decidiu abrir a janela da sala e ficar olhando a rua. Ela morava numa avenida movimentada de dia, mas à noite extremamente calma. Ficou ali, pensativa, atenta a todos os ruídos até que, ao longe, surgiu uma luz que veio na direção dela e parou. Parou iluminando o seu rosto, a sua boca, os seus olhos, os seus cabelos. Olhou para a direita e enxergou-se no vidro da janela que abria para dentro. Lá estava o seu amor. Ela sempre fora o verdadeiro e grande amor dela própria. Deu dois passos para trás, fechou a vidraça e foi deitar-se feliz.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Cálcio

Ela entrou na casa de sua amiga e viu, na cozinha, na prateleira, acima da pia, aquele vidro. Imediatamente, como se fosse transportada para um passado distante se viu entrando no restaurante do pequeno hotel. O sol entrava pelas inúmeras janelas, o sol do entardecer. Era quase hora do jantar. Correu, seguida de seu primo, dois anos mais velho, e de seus pais. Acomodaram-se à mesa, sempre a mesma, à esquerda, encostada à parede de madeira. Como se colocasse uma foto em zoom, visualizou as mãos da mãe pegando o vidro de conteúdo branco, abrindo a tampa e enchendo uma colher de sopa com o granulado que ali estava acondicionado. Viu a colher se virando para ela, ficando cada vez maior, sentindo cada vez mais forte aquele cheiro. Apertou os lábios como se quisesse que não mais abrissem e fechou bem os olhos, como se aquela atitude pudesse evitar o sofrimento. Não, não podia. O som da voz de sua mãe mandando que ela abrisse a boca foi o empurrão que precisava. Automaticamente abriu os olhos e a boca e aquela enorme colher entrou. Os grãozinhos amargos e "fedorentos" pareciam aumentar ao toque da língua úmida da saliva criada em abundância, não sabia ela se de nojo ou se de medo. Mas que ajudava, ajudava. Engoliu quase que de uma só vez a fim de que o sacrifício terminasse logo. Olhou para o lado e viu a cena se repetir com seu primo. Voltou ao presente com sua amiga perguntando o que tinha acontecido. Então ela contou que ao ver o vidro de cálcio, lembrou de quando era obrigada a tomar durante os veraneios em algum hotel à beira de alguma praia. Devia ser pela fixação que o sol proporcionava.

terça-feira, 12 de junho de 2012

Meninas de coragem!

O telefone tocou, e eu atendi. A voz da minha prima gritava para eu ir ligeiro para a casa dela porque descobrira com quem estava meu anel de ouro com um pequeno brilhante, presente de primeira comunhão. Saí imediatamente e corri as duas quadras e meia que nos separavam. Lá chegando, subi esbaforida quatro andares de escada, até que me dei conta de que teria ainda mais oito para chegar ao apartamento dela.Uma outra amiga e minha prima me esperavam com a porta aberta ansiosas. Entrei e fui puxada até a área de serviço. Fizeram sinal para que eu fizesse silêncio e apontaram para onde eu devia olhar! Meus olhos foram baixando, percorrendo andar por andar, a vista que se tinha era das áreas de serviços dos outros apartamentos. Décimo primeiro, décimo, nono, e lá no oitavo andar estava uma moça magra alta, que já havia trabalhado na minha casa. Ela esfregava umas roupas no tanque e, em um de seus dedos, brilhava, àquela hora do dia, como se fosse uma estrela ímpar numa noite escura, o meu anel, o meu brilhantinho amado. Mas seria realmente o meu anel? Com o auxílio de um binóculo, analisei mais. Era, era ele. Porém surgiu uma questão: como o tomaríamos de volta? Ela nos entregaria sem problemas? E a solução que nós, adolescentes de quinze anos, da década de sessenta, foi chamar a polícia. Sim, nós telefonamos para a delegacia e, em poucos minutos, chegaram. Relatamos o fato, eles foram ao apartamento onde a moça trabalhava e a prenderam. Pasmem, embarcamos junto no camburão e fomos ao departamento de polícia. Lá o delegado a interrogou na nossa frente, ela devolveu o anel e nós... retiramos a queixa. O que queríamos era o anel de volta e que ela aprendesse a não mais mexer no que não era dela.

sábado, 9 de junho de 2012

Surpresa na noite

A noite estava fria, muito fria. Ela dirigia seu carro novo, indo para casa após o trabalho. Subiu a ladeira que fazia parte de seu caminho, parou numa das sinaleiras e notou que não havia mais ninguém na rua, além dela. Nenhum carro, nem estacionado, nenhuma pessoa, nem sequer cachorro ela viu. Olhou para os prédios ao redor e pensou: estão todos já dormindo, mas nem é tão tarde assim. Devia ser o frio. Tudo estava escuro, bem escuro. A luz vermelha da sinaleira trocou para o verde, ficou assim por uns trinta segundos e apagou. Foi o tempo de ela dobrar à esquerda para pegar a avenida principal que a levaria até seu destino. Tudo escuro e vazio. As árvores pareciam ter enchido suas copas, ela seguia, desconfiada. Sem esperar, surge a sua frente uma luz, bem densa, fortíssima. A princípio não identificou o que era até porque, neste momento, seu carro começou a engasgar como se começasse a faltar gasolina. Desesperou-se, disse alguns palavrões, e sua condução morreu. Abaixou a cabeça sobre a direção e agarrou-se a ela como se dali pudesse vir uma solução. O que poderia fazer? Foi neste momento, que sentiu um clarão cobrindo tudo. Levantou os olhos aos poucos, estava com medo. Focou o asfalto iluminado, seguiu aquele facho de luz e deu de cara com a causa de todo esse evento indescritível. Lá estava ela, enorme, densa, brilhante, em forma de um grande "D": a LUA! O prazer daquela visão foi tanta que saiu do carro, esqueceu o medo, o frio e caminhou sorrindo. Lembrou das noites da infância quando aprendeu que, se a Lua estivesse em forma de "D", estava decrescendo, minguando. Belos ensinamentos que jamais serão esquecidos. O carro? Ah! Ao chegar em casa, feliz da vida, ligou para o seguro!

terça-feira, 5 de junho de 2012

Coragem inesperada

Ela tinha quinze anos. Sempre parecera meio tímida, mas defendia com unhas e dentes os princípios em que fora educada. Todo dia, desde muito pequena, gostava de ser a encarregada de fechar a porta de veneziana da sala que dava para a sacada da casa. Dali tinha-se uma bela svista da rua. Lá pelas dez horas da noite, ela já de camisola, ia até a sala, abria a porta de vidro e com uma mão em cada bandeira da veneziana a fechava, certificando-se sempre se estava bem trancada, pois garantia, assim, a segurança da família. Porém, antes disso, curtia ficar alguns minutos espiando por entre as rendas da cortina da porta de vidro. Ficava no escuro, sem que ninguém a pudesse ver. Parecia que esperava ou tinha conhecimento de que algo poderia acontecer durante aqueles poucos minutos em que ela cuidava da sua rua. Do seu ponto de vista enxergava o prédio de um banco, não muito iluminado; uma casa de móveis, bem iluminada, mostrando mesas, camas, guarda-roupas, poltronas, tudo muito bem trancado por vidros e cortinas de grade; e uma joalheria, com vitrinas repletas de anéis de pedras preciosas, pulseiras de ouro, colares de pérola, óculos, e até vasos de puro cristal. Naquela noite, enquanto ali estava espreitando, viu um rapaz que caminhava de um modo estranho, olhando seguidamente para todos os lados. Isto a fez ficar em alerta. Ele foi, aos poucos, chegando pra perto da parede, passou pela loja de móveis, na mesma atitude suspeita, e já quase roçando as vitrinas da joalheria, foi até o fundo, deu uma parada, olhou de novo para todos os lados e deu uma estocada no vidro com algo que tinha na mão. Na mesma proporção em que os vidros caíam, nossa amiga, num impulso, abriu a porta e começou a berrar: "Pega ladrão, pega ladrão!" O rapaz levou um susto, olhou para ela, fez sinal "de banana" para ela e correu. Correu e sumiu. Os gritos alertaram o guarda do bairro que veio imediatamente, chamou a camburão, sim, naquele tempo, chamava-se camburão e ficaram cuidando da loja até o amanhecer. A garota foi dormir feliz por ter evitado um roubo e surpresa por sua coragem. Ao chegar da escola, ao meio-dia, aguardava-lhe um lindo presente do gerente da jolheria.

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Num trem na Escócia

O balançar do trem andando lentamente perto da próxima estação me trazia o gosto de final de carrossel. Fazia meu corpo deitar ora para um lado, ora para o outro. O sono que ia tomando conta de mim trazia-me a sensação de embriaguez. Era noite e nada se via lá fora. Estávamos indo em direção à Escócia onde faríamos um turismo em duas cidades. A primeira seria Glasgow, dizem cidade moderna e uma das mais populosas e depois viríamos a Edinburgh. A minha ansiedade em torno da Escócia tinha fundamento nas histórias que desde pequena ouvia, nos romances de Conan Doyle que lia e nos filmes que insistem em fomentar e ratificar as lendas. Lendas? Estávamos em duas: uma amiga e eu, velhas conhecidas e trabalhadoras da mesma Escola. Hoje estávamos as duas aposentadas e tentando preencher o tempo, passeando pelo mundo. Havíamos passado três dias em Paris e de lá tomamos um trem que nos levou a Londres. Nesta, trocamos de trem e agora nos balançávamos nesse vagão. Ao passarmos por Newcastle, muitas pessoas desceram e minha amiga foi sentar-se em um banco que ficara vazio. Não mais a vi. Provavelmente havia pegado no sono. Fizemos ainda mais duas paradas, o trem foi esvaziando mais, e eu fui me sentindo sozinha. A princípio, não dei muita bola, afinal, normalmente, acontece desta forma quando o nosso destino é o mais distante. Olhava para todos os lados, porém só via um menino que, de tempos em tempos, vinha perto de mim, mas não me olhava. Achava engraçado, ele era lindo, de cabelos quase brancos, de um brilho impressionante, e demonstrava muita saúde. Seus olhos eram de um azul cor do céu, do céu brasileiro, porque o daqui era quase sempre cinza. Ele corria até perto de um dos bancos, dava uns gritinhos e voltava para seu lugar que, provavelmente, era em outro vagão, pois ele sumia quando a porta se abria automaticamente. Eu não conseguia entender qual o motivo de sua vinda, nem de sua alegria. Assim foi por alguns minutos. Pelo autofalante foi anunciado que a próxima estação seria Glasgow, onde todos deveriam descer. Onde estaria minha amiga? Levantei-me, passou por mim o menino quase me atropelando. Parou de novo perto de um dos bancos perto de mim, sorriu, gritou e correu de volta, sumindo pelo mesmo lugar de sempre. Peguei a minha mala no compartimento especial e vi que a de minha amiga lá continuava. Onde andava aquela danada. Estaria ela fazendo alguma brincadeira comigo? Ela gostava desse tipo de alegria infantil! E eu também! No entanto, o trem parou, desci e comecei a caminhar pela estação em busca de alguém que me ajudasse. Já passava da meia noite, todas as lojinhas e bares da estação estavam fechados. O trem partiu adiante e minha amiga, provavelmente, nele! E agora? Fui em direção ao guichê de informação para tentar resolver o que agora virara um problema. Não havia mais ninguém lá. A quem eu poderia me dirigir se não encontrava mais viva alma? Fui andando lentamente e, à medida que avançava, as luzes iam se apagando. O que eu faria agora? Talvez tentar algum hotel e deixar o caso para outro dia, mas e minha amiga? O que ela faria ao acordar sem mim? Não falava uma palavra da língua local. Tinha de ir atrás de uma solução imediatamente. Saí das dependências da estação e comecei a caminhar pela única rua que conseguia ver. As luzes públicas não estavam acesas, e os moradores, com certeza, já descansavam. Mas onde estavam aqueles que recém haviam chegado? Tudo era tão estranho! Estranho foi, quando ao longe, ouvi uma espécie de grito, mas meio abafado, seguido de uma risada infantil. Fiquei como uma piorra, tentando visualizar quem fazia aquele som, porém, cada vez que era ouvido, parecia vir de uma diferente direção. Estaria eu ficando louca? Parei! E mais uma vez ouvi, agora, com certeza, atrás de mim. Virei-me! Lá estava uma luz pequenina para a qual passei a me dirigir e, quanto mais me aproximava, maior ela ficava. Para surpresa minha, ao chegar bem perto, quando até meus olhos eu tinha de apertar para proteger do brilho, lá estava o menino lourinho do trem que me levou pela mão até uma caverna onde, deitada adormecida, estava minha amiga. Perguntei como ela havia chegado ali e por que ela não estava acordada. O menino, numa língua um pouco diferente do inglês que eu entendia, mas compreensível, disse-me que, no momento em que ela sentou naquele banco de onde saíra uma mulher, tinha se coberto de um pozinho que a fizera dormir. Perguntei por que isso acontecera, e ele me falou que a senhora que tinha levantado dali era uma bruxa. Todo o lugar por onde ela passava, deixava algo para atingir quem ocupasse o mesmo assento, não gostava que tomassem conta de um lugar que ela tivesse estado. Era uma mania dela. A maioria delas não são assim. Minha amiga continuava dormindo. Então perguntei o que deveria fazer para que ela acordasse. Ele disse que o tempo faria passar o encanto. Mas quanto tempo? Eu perguntei. Tudo dependia de cada um. Nesse momento, ela começou a abrir os olhos, e eu me abaixei para tentar falar com ela. Ouvi novamente os gritinhos e risos e não mais vi o menino. Minha amiga levantou e juntas nos dirigimos à estação. O dia já estava amanhecendo e tudo parecia voltar ao seu devido lugar. Nas casas, melhor nos grandes prédios já havia barulho, vozes e luz. Chegamos à estação, onde várias lojinhas estavam abrindo suas portas e lá já estavam, perto dos banheiros as malas, as minhas, e as dela! Minha amiga nunca falou sobre o assunto, nem eu. Continuamos a nossa viagem sem termos uma explicação plausível sobre o episódio. O que mais aconteceria de estranho nas cidades para onde íamos? (Texto escrito em outubro de 2011)

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Onde está o silêncio?

Adoro fechar os olhos e curtir o silêncio do meu apartamento. Sem televisão, sem rádio, sozinha em casa. Sempre fiz isso, desde muito pequena, na minha velha casa, no chalé da praia, em meio as palavras de um Padre numa Missa. Hoje, por volta do meio dia fiz de novo. Sentada em uma das poltronas da sala, desliguei a TV e fechei os olhos. Engraçado o meu querido e emocionante silêncio tinha som de motor de carros, freada de ônibus,latido dos cachorros da vizinhança, berros de um casal de papagaios. Onde estás, meu silêncio? Será que me abandonaste para sempre? Fiquei assim, aguardando que ele chegasse, por um bom tempo. E nesses momentos saboreei novamente as delícias da espera de um amado, as inseguranças de um amor da adolescência, as carícias de um vento no rosto sorridente. Mas o melhor de tudo aconteceu quando me dei conta de que, mesmo em meio aqueles sons indesejados e inesperados, eu ouvia as batidas do meu coração, já quase um velho cansado de guerra, porém forte e faceiro, pronto para enfrentar as batalhas dessa vida cheia de altos e baixos. E então conversei com o meu silêncio, pedi-lhe desculpas, pois já não sentia tanto a falta dele. Ele havia sido substituído pelo maravilhoso silêncio do meu coração!

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Alguém hoje faz isso?

Ele foi-se chegando lentamente, com aquele seu jeito único e silencioso. Trazia nas mãos umas folhas de papel dobradas. Pediu-me licença para atrapalhar o meu trabalho, sentou-se numa cadeira de forma que ficamos como se estivéssemos numa daquelas conversadeiras usadas muito antigamente. Com as mãos trêmulas foi abrindo uma por uma as dobraduras e vi que eram três folhas de papel de carta, tipo seda, as três totalmente escritas de um lado. A cor já era amarelada, e a tinta já estava quase apagada, mas a caligrafia era algo incrivelmente simétrico, parelho, perfeito. Mais uma vez pediu-me licença, agora para ler aquela que tinha sido a terceira carta escrita, num espaço de doze horas, para a moça que havia despertado em seu coração a chama do amor eterno. Começou a ler com a voz firme de um adolescente, dando-me um olhar de quando em vez. A comparação do que ele sentia ao que os mais diversos pares famosos reais ou da ficção sentiam demonstrava o tamanho do amor e da cultura daquele homem admirável. E assim foi passando, através de sua voz, Romeu, Julieta, Desdêmona, Othelo, Chopin, George Sand, Hamlet e outros, sempre e cada vez declarando o quanto ela, a amada, lhe enchia de inspiração e confiança no futuro. Quando terminou a leitura, apontou para um retrato na parede ao fundo de um corredor e disse que ela era culpada de tudo que havia escrito. Agradeceu a minha atenção, dobrou as folhas, levantou-se e foi para seu quarto, onde talvez seja o lugar que tenha escolhido para aguardar o dia em que com ela voltará a se encontrar. Deixou-me ali pasma, embevecida com tanto amor e tanta cultura que um homem nos seus oitenta e três anos ainda consegue manter intactos. Eu é que agradeço a lição, seu Rubbo!

terça-feira, 8 de maio de 2012

Aquele corredor!

Eu vinha a passos largos, nem sei bem a razão. Fazia anos que não voltava àquele bairro, àquela rua. À medida que andava, dava-me conta de que tudo estava mudado. Não conseguia identificar os prédios, as pessoas, a árvore que teimosa crescia entre a parede de um novo edifício e um poste de luz. Aliás, este último não mudara. Até a calçada não era mais a mesma, lajotas grandes se entrometeram e tomaram o lugar das pequenas pedras vermelhas que em combinação com umas mais claras e outras mais escuras compunham um lindo bordado para receber os nossos calçados. De repente, um meia porta entreaberta me fez parar. Era o número 1230. Ouvi a delicada voz da menina de tranças. Ela ria. Espiei e vi, ao longe, o triciclo cor de vinho, rodas com pneus fortes e na direção estava ela, de vestido xadrez rodado, fitas brancas no cabelo, sandálias que faziam força para dar velocidade. Tudo estava esvoaçante, o corredor parecia não ter fim, e ela vinha em sua corrida matinal, na ânsia de aproveitar bem a brincadeira de criança. Eu me deliciava com a visão, sorria sozinha. Mas ela vinha, e vinha, senti que iria bater em mim, porém nada fiz. Ela veio, bateu, rasgou o meu peito, entrou, acomodou-se no meu coração, e eu continuei a minha caminhada, agora com o sorriso da saudade no rosto.

sábado, 5 de maio de 2012

Um dia azul

O azul tomava conta de tudo. O céu, naquele dia, havia acordado num tom iluminado e exuberante. Nem uma nuvenzinha, nem uma manchinha, nem o sol conseguia-se enxergar de onde estávamos. A cadeirinha de praia, confortável, sustentava docemente o corpo dela, vestida também de azul, a combinar com os grandes, mas cegos olhos. Olhos estes escondidos atrás de um par de óculos escuros presenteados por seu sobrinho. Ele também ali estava, de calção listrado de branco, preto e azul, corpo nu e brilhante de suor, numa mão um pano de algodão azul e noutra uma esponja ensaboada... azul. Eu, com meu abrigo e tênis, que ganhara da prima que viajara a Nova Iorque, mais o boné emprestado de meu filho mais velho, tudo azul, aguardava o término do trabalho. Sim, eu chegara ao lugar por volta das dez horas, aguardara um pouco, e, em seguida, o rapaz havia começado o trabalho. Ele ali ganhava o pão de cada dia sob o calor do sol, sob as gotas da água. Ela, sua tia cega, sem ter onde ficar, com ele passava o dia a aguardar o final do dia quando, de mãos dadas, voltavam à casinha de madeira pintada de azul, conforme relato da anciã. Na ansiedade de mulher executiva e quase hiperativa, eu caminhava de um lado ao outro do local, podendo até dizer a metragem do terreno. Fui observando as mudanças de empoeirado para molhado, de molhado para ensaboado, de ensaboado para molhado de novo e mais molhado e, finalmente, vi o pano azul alisar, alisar, alisar até tirar a última gota de água de meu carro...vermelho.

sábado, 28 de abril de 2012

Da minha janela

Da minha janela, vejo muitas coisas: edifícios, telhados, janelas, um pedacinho do Guaíba, antenas, chaminés, copa de árvores. Porém, hoje, a moldura de tudo isso é um céu acinzentado, o que deixa tudo mais triste, mas eu não estou assim. A minha curiosidade não deixa que esse sentimento tome conta de mim, então, ao longe, destaca-se, entre outras, uma luz, mais forte, mais amarelada, mais viva. Sim, porque a luz pode ter vida, e eu vejo a vida crescendo através de meus olhos, através da minha imaginação. E lá, de dentro daquela luz surgem uma mulher e um homem, amantes, carinhosos, alegres. Aparece-me um menino ranhento, que mal consegue dar os primeiros passos, com as fraldas frouxas de tanto xixi, cambaleando feito um bêbado, mas com um sorriso largo de satisfação. Vejo também um cachorrinho pequeno, peludo, branco com fitinhas nas orelhas, que não para de pular do sofá para uma poltrona, desta para outro sofá, deste para a cadeira de balanço, e seus olhinhos esbanjam divertimento. Avisto agora a doméstica que, terminado o serviço da semana, se enfeita para ir curtir o sábado e o domingo junto ao amado, dançando, cantando, bebendo, conversando se amando. O telefone toca aqui, e eu atendo. A conversa se estica, as novidades são ditas e ouvidas, não olho mais para fora da janela. O tempo passa, ouço a minha voz, ouço a voz da minha amiga, emociono-me com minhas gargalhadas. Desligo o aparelho e vou até a janela. Não mais há a luz, mas tudo que ela me fizera ver continua iluminado dentro de mim.

terça-feira, 24 de abril de 2012

Nada igual!

Bota, tira! Bota, tira! Bota, tira! Às vezes, mais rápido, outras, mais devagar. Aquele homem parecia não cansar. Seus braços fortes pareciam feitos de ferro torneado, é claro. Em alguns momentos, usava os dentes, dentes brancos, grandes, sadios. Usava-os como se quisesse, com muita gana, abocanhar um pedaço do que estava mordendo, mas, quando abria a boca e lambia os lábios, via-se que nenhuma violência tinha acontecido. E continuava: bota... tira! Bota... tira! Nada ao redor o incomodava, total concentração. As pernas, em posição entre abertas e levemente dobradas, movimentavam-se de forma cadenciada, mostrando os músculos reluzentes que buscavam o equilíbrio a fim de não acontecer nenhum imprevisto que encerrasse aquela deliciosa brincadeira. De vez em quando, fazia menção de que pararia aquele ritual, porém antes mesmo que se tornasse totalmente imóvel, retornava aos movimentos: bota, tira...bota, tira... bota, tira... Ele suava! Eu já estava cansada por ele, todavia nada me fazia sair da janela. Queria ver o final daquele filme. Sim era um filme maravilhoso que eu assistia, experimentando as mais diversas emoções. De repente, um estremecer maior o fez gritar, urrar... era enorme! Sim, eu também quase comecei a gritar, afinal nunca vira um peixe daquele tamanho. Havia valido a pena todo o esforço, todo o cansaço, todo o tempo usado!

domingo, 22 de abril de 2012

Maria

Todos os dias, ela ouvia o apito do pequeno vapor que passava todos os finais de tarde, cortando as águas do rio que fazia da cidade onde morava um lugar quase mágico. Não havia nada melhor do que abrir o portão de casa e correr, sentindo na sola dos pés o capim fino e cheio de rosetas, a areia grossa e quente, a água fria e lamacenta, exatamente, nesta sequência. Era isso que fazia ao ouvir aquele som. E de dentro da água, com um largo sorriso nos lábios, que contornavam a boca com poucos dentes, vestido molhado, balançava os braços finos em grande aceno para os desconhecidos que ocupavam a embarcação. Era um ritual! Um dia, Maria não mais ouviu o apito, o vapor não mais passou, ela não mais correu, nem acenou. Onde andará Maria?

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Um pequeno conto sem nexo

O rio estava tão calmo, a àgua tão parada que podia-se dizer que reproduzia bem a frase: "Parecia um espelho." O céu estava num tom azul cinzento, mas sem nuvens, limpo. O sol... não brilhava como em outros dias, em outros lugares. O barco era pequeno, um barco de pesca. Nele dois homens, em pé, equilibravam-se enquanto aguardavam para puxar a rede. Um era mais velho, mais forte, mais alto, mais pescador. Outro nem precisa dizer. Eles não falavam, nem se olhavam. Tudo corria numa paz tão grande que chegava a doer. A vida deles parecia não passar daquilo, pescar. Mas o quê? Fazia dias ou, talvez, semanas que ali vinham e ficavam por muitas horas. Ninguém os conhecia na pequena cidade. Surgiam de um momento para o outro como se brotassem das profundezas do rio. Ao cair da tarde, sumiam como se abduzidos por uma nave invisível. Porém naquele domingo de céu cinzento, de uma hora para outra, a água do rio começou a escurecer, ondas enormes passarem a se formar, o céu cobriu-se de relâmpagos, mas nada disso tudo abalava a postura daqueles dois.Como duas estátuas de bronze, largaram as redes vazias, elevaram as mãos para cima, alongaram seus corpos e foram, foram ao espaço sideral em busca não sei de quê!

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Um banheiro bizarro

O vapor da água do chuveiro não deixava ver-se nada na enorme sala que, entre outras coisas, servia de banheiro. Uma cortina de plástico rosa delineava o que se podia chamar de box. O piso de um tom avermelhado era o mesmo em toda a extensão da peça, sem desnível, o que fazia com que se tivesse cuidado para não molhar tudo ao se banhar. Era inverno, e fora da cortina de plástico o frio tomava conta. Sequei-me rapidamente, o corpo tremia, e eu dava pulinhos. O que será que minha tia Maria guardava naqueles armários que cobriam as paredes? Enrolei-me na toalha branca, já meio rala, que ela me dera e tentei abrir uma das portas. Nada, não consegui, estava chaveada. Dei mais alguns passos e deparei-me com outra porta, agora, com um cadeado. Mas o que ela guardava, assim , tão fechado, como se fossem segredos? A minha curiosidade não cessava, e eu dei meia-volta e lá estava uma prateleira com uma cortina de algodão grosso, floreado em cores vivas, encobrindo o que lá dentro estava. Ah! Que maravilha! Finalmente iria descobrir, pelo menos, parte do tesouro. Peguei com o polegar e o indicador delicadamente o pano e, à medida que ia abrindo, ia baixando a cabeça como se eu não quisesse que ninguém visse o que eu veria. A toalha desenrolou-se, e eu levei um susto de novo com receio de que alguém me visse. Olhei rapidamente para o trinco da porta daquele ... banheiro e constatei que a tranca estava na posição de fechada. Coloquei a toalha e voltei a olhar as prateleiras. Garrafinhas, garrafinhas e mais garrafinhas de um líquido escuro lá estavam como a me esperar. Não perdi tempo. Peguei uma delas, tive dificuldade, mas tirei a rolha e coloquei na boca. Era suco de uuuuuuuuuuuuuuva! Bom! Muito bom! Suco de uva estocado no banheiro! Quem iria desconfiar? Aquele virou o meu segredo. Naquelas férias, todos os dias, na hora do banho, eu me deliciava com o suco. Perdi as contas de quantas garrafinhas esvaziei. Será que minha tia Maria alguma vez desconfiou do que acontecia? Pelo menos ela nunca falou!

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Uma cena poética

Antônio foi se chegando de mansinho, meio cambaleante, tomando cuidado para não cair. Largou a trouxa sobre uma pedra e continuou de pedra em pedra rio a dentro. A garrafa plástica de três litros vazia, que já trazia na mão direita, foi afundada na água poluída até que encheu. Antônio voltou para a beira, segurando-a com as duas mãos. Largou-a ao lado da trouxa, que foi aberta e de onde tirou uma das peças de roupa. Foi pegando uma a uma e, como num ritual, fez com todas as mesmas ações: pegava a roupa, entrava no rio, molhava-a, esfregava bem, tirava e botava na água como se tivesse a enxaguar, torcia, trazia para a beira e pendurava num dos galhos de uma árvore, que parecia estar ali orgulhosa a lhe servir, tamanha era sua verdura e brilho. Quando tudo estava lavado, Antônio tirou uma por uma as roupas do corpo, fez o mesmo e, depois, sentou numa daquelas pedras, que também brilhavam como que de satisfação, pegou a garrafa e bebeu...bebeu...bebeu muito daquela água. Foi recostando-se devagarinho até deitar-se totalmente. E lá estava: Antônio deitado pelado, as roupas coloridas enfeitando a árvore, e o rio imenso servindo de moldura.

domingo, 15 de abril de 2012

Por que você me quer?

Lado a lado eles caminhavam com passos firmes naquele corredor. Papéis amassados e outras sujeiras decoravam o chão não mais branco dos ladrilhos já sem brilho também. O sol penetrava em listras pelas basculantes e ia batendo nos olhos dos dois. Nada se ouvia, a não ser a batida seca dos sapatos com sola de borracha que eles calçavam. Um tinha no rosto a firmeza de quem sabia o que queria, para aonde ia, o que esperava. Outro seguia o primeiro um pouco atrás, sem deixar de estar ao sua direita. Este não mostrava a mesma certeza nos atos, parecia ir por ir, sem saber exatamente aonde iria chegar, ignorando o porquê daquela caminhada silenciosa. A poucos metros da porta à frente, ouve-se: por que você me quer?

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Nossa avó enlouqueceu!

Nesta Páscoa, assim como aconteceu no último Natal, nossa avó insistiu que a festa fosse na sua casa. Ligava para todos, filhos, netos e noras. Não queria que ninguém faltasse. Realmente, ela vinha de uma família que tradicionalmente gostava de festejar com todas as pompas e rituais cada um dos eventos religiosos. Não é preciso dizer que, desde pequenos, éramos obrigados a participar de encenações, orações e tudo mais. No entanto, hoje, estávamos preocupados pois em dezembro tivemos uma surpresa com a confusão que ela, a nossa tão cheia de energia avó, fez. Porém, acabou nos convencendo de que tinha feito de propósito só para brincar conosco. Então, sem poder convencê-la a ir à casa de um de nós, fomos todos a sua casa. Sabíamos que lá encontraríamos enfeites alusivos ao coelhinho, ovos escondidos por toda parte, brincadeiras de adivinhação e muita comida e bebida. Ela realmente sabia fazer uma festa temática, ainda mais, se fosse religiosa. Na hora marcada, chegamos, casualmente, todos juntos. Tocamos a campanhia, nossa avó acionou a abertura da porta lá de seu apartamento, subimos, ocupando os dois elevadores e batemos na porta. A porta foi aberta e lá estava nossa avó vestida de...Papai Noel!

sábado, 7 de abril de 2012

Sem pruridos!

Quando me dei por conta, estava beijando aquele pequeno crucifixo que a moça segurava de maneira respeitosa em suas mãos. Não era qualquer um que podia segurá-lo. Não sei, deviam ser pessoas que passaram por algum curso ou que demonstraram durante suas vidas o quanto são dedicadas aos rituais da Igraja Católica. Eu não era uma dessas pessoas, mas tinha a plena consciência de o quanto Jesus e seus presseitos eram importantes para mim em todos os momentos de minha vida: tristes e alegres. Ainda quando criança, sempre cumpria com os deveres de boa critã, ia à Missa, comungava e rezava muito por qualquer necessitade, até mesmo para pedir que aquele garoto bonitão da minha sala de aula que não me dava atenção passasse a me notar. Depois, quando casei, por circunstâncias da vida e por ter me ligado a uma pessoa que não tinha hábitos religiosos, acabei me afastando. As crianças enchiam os meus dias, e o trabalho de professora ocupava até minhas horas de folga. Quase não tinha tempo para rezar. Hoje, sem saber como e por quê, meus hábitos voltaram. Rezo, vou à Igreja, comungo, sinto-me bem fazendo isso, consagrando Jesus. No entanto, o foco mudou: hoje agradeço, agradeço pelo tempo que está me permitindo que tente realizar meus sonhos; agradeço pela força que recebo ao ter de enfrentar as tribulações da vida; agradeço pelos filhos que Deus me deu, talentosos, amorosos, lindos por dentro e por fora(há que se deixar enxergar essa beleza deles); agradeço pelos netos que me incentivam, sem ter consciência, a viver cada vez de forma mais alegre, tentando deixar para eles, através do exemplo, o legado, sem preço, de ter uma vida que valha a pena. E acho que foi por tudo isso que ontem, durante a celebração do Corpo de Deus, fui levada a beijar a imagem de louça fria, triste e, até feia, sem nenhuma vergonha, sem nenhum prurido, sem preconceito. Beijar o que outras bocas haviam tocado!

Graça?!

Houve um tempo em que eu ficava quase sem graça, ansiosa esperando o que minha mãe ia fazer para me fazer graça! Hoje eu faço graças para agradar àqueles que acham graça das graças que faço para presentear aqueles que são minhas graças cheias de graças! Que graça, né? Meio sem graça...!

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Pedro Henrique

Ele ia a minha frente. Não sei por que eu não conseguia deixar de segui-lo. Era grande, forte, robusto. Seu nome era Pedro Henrique. É Pedro Henrique! Dobrou à direita e à direita eu fui. Acelerava mais, e eu nem sempre tinha forças para manter-me perto dele. Porém não o perdia de vista. Começou a subir uma lomba, não mais corria como antes. E eu?! De que maneira, com minha idade, teria condições de acompanhá-lo? Rezei e pedi a Deus que me desse forças para não desistir no meio do caminho. Dai-me persistência! Dai-me perseverança! E eu ia, mais lentamente, mas ia. O que me fazia não parar de ir atrás de Pedro Henrique? Atração? Curiosiade? Desconfiança? Sei lá! Eu não desistia! Ele já chegara ao topo da colina e começara a diminuir o andar. Fez menção de que dobraria à esquerda, todavia não havia ali uma rua. Dobrou, era a entrada de carro de uma bela casa. Eu... parei meio à distância e fiquei olhando... ou eu cuidava? Não sei. Algum pressentimento não me deixava chegar mais perto. Talvez aquela atração ou curiosidade ou desconfiança se transfomara em medo. Então, por que não me tocava ladeira abaixo? Escondi-me atrás de uma árvore e, enquanto meu coração batia como se fosse saltar do peito, meus olhos quase saltavam do rosto na ânsia de não perder nada. Meu perseguido parou, fez que ia entrar, mas... buzinou! Da porta da casa saiu uma belíssima loira, alta de óculos escuros, lindamente vestida com um míni casaco vermelho e meias de seda pretas. O motorista saiu do Pedro Henrique, abriu a porta para a madame, entrou novamente, deu partida e sumiu rua abaixo. Nunca mais vi o Pedro Henrique. Também isso é nome que se dê a um táxi? E ainda escrito bem grande, em letreiro branco no vidro de trás!

quinta-feira, 29 de março de 2012

Lugar errado!

Foi chegando de mansinho, meio desconfiada. Tinha certeza de que o lugar era aquele, mas não via ninguém conhecido. Abriu o enorme portão de ferro sob a melodia da falta de lubrificação e foi entrando passo a passo. A noite já vinha chegando e as sombras davam ao local um ar de mistério. Bem ao fundo do jardim, já perto do prédio, havia uma luz. Devia ser lá. Continuou seu caminho e, à medida que avançava, ia ouvindo, cada vez melhor, o som de pandeiros. Sim, pandeiros! Ao chegar mais perto, avistou uma roda de mulheres sentadas em cadeiras de praia brancas, cada uma com um pandeiro na mão. Todas vestiam amplas saias estampadas, blusas brancas e lindos colares caídos sobre os seios. Todas tocavam ao comando de um homem. Ele, de camisa e boné vermelhos, batia no seu instrumento e incentivava as alunas. Sim, as alunas. Ela havia chegado num espaço onde acontecia aula de pandeiro! Você sabia que isso existe? Pois nossa amiga foi-se chegando e, a cada mudança de ritmo, saía cantando alguma música que se encaixasse. Estava na maior alegria, feliz da vida em fazer parte daquele grupo, mas estava no lugar errado. Foi, então, que ouviu chamarem seu nome. Seu destino não era aquele, era mais adiante, na casa ao lado! Despediu-se e foi fazer o seu trabalho. (Vocês sabiam que há aulas de pandeiro no Museu do Trabalho aqui em Porto Alegre?)

segunda-feira, 26 de março de 2012

Eu moro numa cidade (3)

Eu moro numa cidade que, quando está de aniversário, presenteia seus moradores com mimos tão preciosos que encanta e satisfaz os mais diversos gostos. Eu moro numa cidade que faz festa todo o mês de sua criação e, durante este tempo, alegra a todos. Eu moro numa cidade em que num domingo pode-se ir à Redenção e lá assistir a um concerto com o pianista Arthur Moreira Lima, que não só nos delicia com sons e arranjos maravilhosos, mas ainda nos dá uma aula de história da música. Eu moro numa cidade em que no seu aniversário pode-se assistir a peças de teatro sem gastar um tostão. Eu moro numa cidade em que no final da tarde, à beira do Lago Guaíba, para nós sempre rio, pode-se, fechando os olhos, voltar no tempo e ouvir as músicas que marcaram a trajetória de nossa maior estrela, ela, Elis Regina, agora dividindo o espaço sideral com outras de menor brilho. Enfim, hoje a minha Porto Alegre está de aniversário, e eu só tenho a agradecer toda a felicidade que ela me dá. Parabéns, minha linda! Obrigada por ser como tu és. Alguém quer vir morar comigo? Na minha cidade?

A gente é de casa!

A gente é de casa, disse aquela voz que não parecia de ninguém conhecido. Pelo jeito era mais de uma pessoa, senão não falaria "a gente". Mas por que àquela hora? O que alguém teria de tão importante para precisar entrar em nossa casa, sem querer aguardar até a manhã seguinte. A noite estava fria, todos já haviam ido para a cama e as luzes já estavam apagadas. Após as batidas insistentes na porta da frente, meu pai levantou-se e, lentamente, dirigiu-se à sala. Acendeu a luz que começou a piscar pausadamente como se fosse apagar a qualquer momento. Meu pai não abriu nem a janela lateral da porta, porém com energia perguntou: "Quem está aí? O que quer?" Meu irmão e eu, a essas alturas já estávamos atrás dele e nossa mãe nos seguia. Quanta curiosidade e...medo! Ao ouvirmos a resposta, meu pai fez menção de abrir, então. Porém, mamãe, mulher mais desconfiada, pegou-o pelo braço, impedindo-o. Neste meio tempo, meu irmão, que sempre fora metido a corajoso, driblou a mamãe, passou no meio das pernas de papai e, quando vimos, a porta estava escancarada. São os coelhos! gritou meu irmão. Até hoje não entendi muito bem o que se passou naquela noite.

sábado, 24 de março de 2012

Eu moro numa cidade

Eu moro numa cidade em que, quando o outono chega, a gente encontra árvores lindas, cheias de flores que se assanham antes do tempo, colorindo de rosa os nossos sonhos. Eu moro numa cidade em que há tanos pássaros que até os papagaios ousam berrar no amanhecer e no anoitecer como se quisessem compensar a ausência dos galos nos dias de hoje. Eu moro numa cidade que tem um pulmão enorme, chamado Parque Farroupilha, onde podemos fazer muitas coisas entre elas caminhar à sombra das árvores ou ao sol, permitindo-nos a escolha. Eu moro numa cidade em que, aos sábados pela manhã, perto do pulmão dela, acontece uma feira de produtos orgânicos onde podemos comprar não só um mel maravilhoso, mas qualquer verdura ou legume da época. Eu moro numa cidade onde há tantas atrações culturais que nos obrigam a escolher entre uma e outra. Eu moro numa cidade que me deixa tão emocionada cada vez que saio a andar por seus cantos que acabo fazendo homenagens feito estas, sim estas pois, se quiserem, podem ler outro pequeno texto a respeito dos encantos da minha Porto Alegre que fiz, acho que, em maio de 2010. Alguém quer vir morar comigo? na minha cidade?

sábado, 10 de março de 2012

Curtinha, mas intensa!

Ai, meu Deus, por que ela fez isso? Por que não se controlou? As coisas nunca mais seriam as mesmas depois deste trágico evento. Todos estavam pasmos, calados. A festa estava tão boa até que aconteceu essa desgraça. A calça de Marinho, a toalha de linho da mesa não tinham mais o tom alvo e o frescor do novo. A atitude de Mimosa havia deixado nelas uma marca indelével. Ele passou as mãos no peito, e elas sentiram o calor do líquido que, agora, já não enganava ninguém, sugeria grande confusão. A culpada permanecia congelada ainda com o instrumento do episódio na mão. O suor escorria em seu rosto, sua boca tremia sem cor, enquanto de seus olhos começavam a escorrer lentamente, uma a uma, lágrimas que não transpareciam se ela estava arrependida ou com medo. O atingido, com dificuldade, levantou-se, empurrando para trás a cadeira que acabou batendo na cristaleira. O vidro da mesma se quebrou e taças de cristal rolaram pelo chão, aumentando mais a tensão do momento. Meio tonto, cambaleando, o marido com os olhos fulminantes, passo a passo, foi até sua mulher e, agarrando com as duas mãos os braços dela... "Não te preocupes, querida, amanhã mesmo mando tudo para a lavanderia. Pega outra garrafa de vinho!"

domingo, 4 de março de 2012

Beleza e juventude eternas

Finalmente chegamos a terra firme. Havíamos navegado por muitas horas em busca da tal ilha onde poderíamos encontrar a sementinha da juventude eterna. Lenda ou verdade? Nenhuma de nós já havia se encontrado com alguém que fizera uso da tal frutinha. Éramos em quatro mulheres, bem vividas, com muitas experiências de vida. O que nos fazia ir atrás desse tipo de promessa? A beleza eterna? O medo da não aceitação? Qual a importância da aparência? Verinha, por exemplo, nunca fora uma beleza, no entanto juntara-se a nós como se não quisesse perder o pouco que tinha. Já Ana Maria sempre fora bela, meio na base da tecnologia, com muitas cirurgias e tratamentos modernos, mas bem bonita. Ela também se entusiasmou com o aceno de juventude eterna. Marilda parecia não se preocupar com nada, porém não queria perder essa aventura. Queria estar junto. Eu..., eu nem pensei muito, juntei-me a elas e vim. Lentamente fomos arrastando nossos pés na areia quente, fina, branca. Adentramos a mata que estava a nossa frente, sem soltarmos as mãos, afinal, ninguém queria perder-se. O sol ainda estava alto e iluminava relativamente bem o lugar. Chegamos a uma clareira, onde nossos olhos se enebriaram com a beleza do campo coberto de lavandas. Ah, que perfume! Atravessamos aquele espaço mágico, penetramos em outro mato e, em seguida, avistamos, ao longe, uma espécie de cerca viva. Aproximamo-nos e avistamos por entre os galhos cheios de espinhos a bela árvore coberta de sementes , frutinhas vermelhas, organizadas em cachopas. Não tivemos dúvidas, apesar da dificuldade, fomos cortando um galho ali, outro aqui e, com muitos arranhões, alcançamos a tão sonhada promessa. Avançamos sobre ela, arrancamos os pequenos frutos e, completamente sem modos, fomos enchendo nossas bocas, esfregando o suco em nossos rostos, corpos, cabelos. Paramos, olhamo-nos e cada uma de nós tinha o sorriso mais satisfeito do mundo. Era a glória, a gente estava linda e jovem. Fizemos o caminho de volta, cantando, pulando, brincando. Corremos até a praia,... vazia! Onde estava o nosso barco? Era aquela a nossa saída? Não havíamos nos enganado de direção? Hoje, acho, faz muito tempo que aqui estamos. Lindas, jovens e sós!

quinta-feira, 1 de março de 2012

Num Voo

Nada fazia com que aquela criança parasse de chorar. Ela e sua mãe estavam sentadas, exatamente atrás de mim. O que seria de meu voo depois de ter tido uma noite anã, com um sono de três horas apenas e, agora, ter de enfrentar um dia inteiro ali, como sardinhas na lata, andando sobre nada, só nuvens abaixo de nós. Havia pessoas de todos os tipos e de diferentes origens. Se este fosse um invento para garantir a existência da raça humana, por motivo de alguma ameaça à Terra, estaríamos mal, pois poucos se falavam. A maioria mantinha-se em seu próprio mundo, uns assistindo à televisão, que a modernidade já permitia, encrustada na poltrona do passageiro da frente, outros jogando games, escutando música, dormindo, eu escrevendo e ela chorando. O descendente de orientais, hoje já nem se consegue definir exatamente de que região tamanha é a mistura entre as raças, levantou e foi ao banheiro. Notei que não foi muito rápido. Ao voltar, fixou os olhos no meu netbook como se estranhasse eu estar escrevendo. Quando sentou, vi o porquê de seu olhar, pois ao reclinar o encosto, fez com que meu brinquedo ficasse sobre meu colo, ele sentava exatamente no banco a minha frente. Mantive a mesinha aberta apesar disso era mais confortável. A garotinha agora dava longos suspiros entre momentos do choro. A mulher que estava a minha direita falou comigo e me mostrou que estava saindo sangue de seu nariz. Disse a ela que colocasse uma bucha de guardanapo de papel e ficasse com a cabeça levantada. O que era difícil, pois ela não parava um minuto, mexia na bolsa, pegava a caneta, tossia, colocava os óculos, tirava-os e assim foi. Acho que o tal sangue parou porque não mais me interrompeu, baixou os olhos e o corpo e passou a escrever. Pensei: tenho concorrente, embora seja a caneta! Em seguida deu uma virada e vi que ela preenchia um daqueles exercícios matemáticos de quebra-cabeça. No mínimo, tinha medo de começar a caducar. E a criança atrás de mim soluçava baixinho como se já estivesse cansada. Nesse momento, o comandante falou em alto volume, dando-me um susto tão grande que dei um grito. O vizinho da esquerda, rapaz, provavelmente de origem germânica ou italiana, forte, pernas grossas, era o que eu via com mais distinção devido a sua posição em relação a mim, ao ouvir o meu grito me olhou com um lindo sorriso. Lindo ou irônico? Tanto faz porque ele voltou a fazer o que fazia, ou seja, exercitava também o cérebro, jogando um game de cartas na pequena tela a sua frente. Por incrível que pareça, a menina, cujo choro havia quase parado, voltara a berrar desesperadamente. Um outro senhor, com ar de árabe ou turco, passou por mim com muita pressa, quase levando meu braço junto. Do outro lado, no outro corredor, uma senhora, vestida de saia xadrez, que lembrava os escoceses, também passou correndo, dirigindo-se ao fundo do avião. O rapaz a minha esquerda levanta e vai para o mesmo lugar, a moça que sentava a seu lado, de cujo rosto eu nem tinha ideia saiu da poltrona e seguiu os outros. Notei que a mãe da menina chorona finalmente acordara e dirigia-se para o mesmo lugar que os outros, levando a menina ao colo. As filas dos banheiros estavam enormes, havia muita gente a aguardar para ocupar as privadas. Ao longe, ouvia os gemidos da garotinha. O almoço havia sido servido fazia uma hora e meia, mais ou menos. Estava maravilhoso. Todos elogiaram e comeram muito, afinal o prato principal era novilho biológico estufado com arroz de cogumelos ou bacalhau com creme e espinafre. Eu e minha companheira de fila havíamos comido bacalhau, todavia muitas pessoas deram preferência ao novilho, talvez não gostassem daquele fruto do mar. O avião agora estava totalmente no escuro, apesar de ser dez e meia da manhã. Lá fora havia uma claridade que doía os olhos, razão para o comandante mandar fechar as janelas. Eu, como queria continuar essa história, acendi a luzinha em cima de mim. O silêncio começava a tomar conta do ambiente, os que levantaram já tinham voltado aos seus lugares, a maioria parecia dormir, estranho. E a garota, agora, em pé, em cima dos joelhos da mãe, suponho, dava tapinhas em minha cabeça e gritava mamãe! Passou-se mais uma hora, o ronco do motor do avião tomara conta de meus ouvidos. Não ouvia a menina também, tudo parecia desligado. Foi, então que o comandante, mais uma vez, anunciou que em meia hora estaríamos chegando ao aeroporto de Guarulhos, em São Paulo. As luzes da aeronave foram acesas, e ... ninguém se mexeu. Nem mesmo os “aeromoços e aeromoças”, era assim que eu chamava, é difícil mudar alguns termos só porque a moda nos faz mudar. Comecei a observar e constatei que as pessoas não estavam dormindo, estavam mortas, inclusive a mãe da menininha chorona que agora dormia tranquila sobre o peito da defunta. Algum de vocês já comeu novilho biológico estufado?

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Fantasmas?

Ela fechava os olhos e lá vinham aqueles rostos, às vezes, pessoas de corpo inteiro. Em preto e branco. Abria os olhos, e nada via, a não ser o que concretamente estava em seu campo de visão e que também era visto por todos. Não havia lugar específico para que isso acontecesse. Podia ela estar em casa, na cama ou mesmo no chuveiro da escola de natação onde fazia seus exercícios. Em princípio, não tinha noção de quem eram elas. Frutos da sua tão fértil imaginação? Seres em outra dimensão? Perguntava às amigas se isso acontecia com elas, mas jamais obtivera resposta positiva. Algumas até zombavam: "Tá vendo fantasma?!". Será? Não conseguia dar uma explicação, nem queria acreditar que pudesse estar vendo pessoas que já tivessem feito a passagem, como dizem aqueles que não gostam de falar qualquer palavra relacionada à morte. Porém, `a medida que o tempo passava, mais frequentemente esse fenômeno lhe acontecia. Um dia, uma forte dor no peito a fez cair ao chão quando estava voltando para casa. E ali, deitada na calçada fria, os olhos cerrados, Maria viu todos os seus amigos sorrindo. Deu-se conta de que, apesar da dor, do tombo, do corpo dolorido, sua mente estava viva pois pensou: "Está na minha hora!" Foi, então, que todos aquelas figuras descoinhecidas que via começaram a rir e uma delas lhe disse para levantar porque não chegara a sua hora. Hoje, quando Maria passeia pelas ruas de seu bairro, vê o cochicho de alguns: " Lá vai Maria, que vê fantasmas e ainda faz folia! (Eu vejo faces e corpos quando fecho os olhos, e tu?)

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Paraíso

Hoje eu fui ao Paraíso! Estranha essa frase. Aprendemos desde de pequenos que o Paraíso é um lugar onde tudo é bonito, tudo é bom, onde não há maldade, onde somos felizes. Então, tentamos levar nossa vida de maneira a merecer esse Paraíso. Pois não é que, quando me dei conta, estava num lugar exatamente como sempre ouvi descreverem, estava no Paraíso. Ali, o canto dos pássaros soava como música suave em meus ouvidos; ao andar pelas ruas, as pessoas me cumprimentavam, esboçando um sorriso como se me conhecessem; meus passos me levavam, como se flutuando, sem que eu me preocupasse se iria me perder; nessa andança, os cheiros que viam das casas me enebriavam; parecia que ali, mesmo o mais exótico dos cactus estava florido. Tudo era belo, e o ventinho da paz balançava as folhas das árvores, agitava delicadamente as roupas nos varais e levava meus cabelos a fazer cócegas no meu rosto. Deixei-me levar. fechei os olhos e fui. Nada me amedrontava, nada me impedia. Fui. Descalça, sentia as pedras do calçamento, a grama em alguns trechos e... a areia. Morna, macia. Parei para movimentar os dedos dos pés e senti-los afundando lentamente. Não! Eu precisava ir adiante. Continuei e fui, fui... A areia agora já não era mais quente. O sol me aquecia o corpo, a cabeça, os cabelos; porém, pouco a pouco, um frio úmido tomou conta dos meus pés. Eu não parava, eu não queria parar, eu não conseguia parar. E assim, calma, mas firmemente, adentrei ao mar, sim era o mar. Já abrira meus olhos e o encanto das ondas iam me deixando tonta. Sentia o gelo da água subindo pelas pernas, uma onda mais forte quase me derrubou. Continuei, fixando o infinito, continuei em direção a ele. De repente, uma parede enorme na minha frente. Não vi mais nada! "Moça! Moça!" Por que gritavam? Por que este homem me beija deste jeito? Tossi! Botei água para fora da boca e perguntei: "Estou no Paraíso?" "Sim, a senhorita está na praia do Paraíso. Onde fica a sua casa?"

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Perda!

Todos os dias ele chegava à janela da sala e dali apreciava aquela linda árvore que o acompanhava desde que era um garotinho. Nada o fazia mais feliz, nada o tranquilizava mais do que acompanhar o dançar de suas folhas ao som do vento. Quantas vezes a agonia de seus medos era dissipada só em contemplar as raízes dela se agarrando com unhas e dentes à terra como se dali nunca mais quisesse sair. Hoje, ele acordou sobressaltado, assustado com um barulho ensurdecedor. Com dificuldade, colocou saus pernas para fora da cama, pegou o copo de cima da mesinha de cabeceira e tomou a água que ali estava toda a noite. Chamou a senhora que trabalhava para ele, mas provavelmente ela não ouvira por causa do ruído estridente e contínuo que o acordara. Decidiu arrumar-se sozinho, por mais dificuldade que tivesse. Fez-se silêncio na rua, e dona Joana, que cortava cebolas na cozinha, parou o seu afazer induzida pelo ruído que vinha do corredor. Ao chegar à porta, avistou seu patrão. Algo estava precisando de reparos, de ajustes. Viu-o de costas, dirigindo-se para a sala. Com certeza, já ia para a janela olhar a sua árvore. O sol, que àquela hora já estava meio alto, feriu-lhe os olhos. Como? Onde estavam os galhos pesados e cobertos de folhas verdes que davam a sombra que amaciava as suas preocupações, as suas perdas, as suas aflições. Homens haviam terminado com tudo, as raízes dela ameaçam o prédio onde morava, o prédio onde habitavam, os seus problemas, as suas saudades, as suas lembranças. Tudo termina! Um dia, esse meu corpo se terminará, essa minha cadeira deixará de andar, tudo virará cinzas nas memórias alheias.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Imaginação?

O sol derramou seu calor dourado sobre meu corpo, e eu fui, aos poucos, sentindo a temperatura subir em cada parte de mim. Fechei os olhos e fui enxergando, primeiro, meus pés, depois minhas pernas, minhas coxas, minha barriga, meus seios, meu pescoço e, finalmente, meu rosto. Eu estava totalmente de um tom amarelo queimado com o brilho dos topázios. Eu estava linda, leve e não me reconhecia mais. Sentia-me fltuando e de onde estava, assistia a vida passando como se fosse um filme, não a minha história, mas a tua, do teu vizinho, da minha comadre, enfim, de todos. Eu conseguia, ao mesmo tempo, saber o que se passava na cabeça de cada criatura. Conhecia os seus pensamentos e sabia o que iria acontecer com cada um muito antes do momento da concretização do fato. Comecei a ir de um lugar para o outro, de cima para baixo, de lado a lado, percorria distâncias enormes em poucos segundos. O tempo, o tempo...o tempo? Quanto tempo se passara? há quantas horas, dias semanas estaria eu naquela situação? Estou tão só, não vejo mais ninguém do mesmo jeito. Até quando ficarei assim? O mais incrível de tudo é que nada me assustava, nada me levava a pensamentos negativos. Não posso dizer que estava feliz, mas também não estava infeliz. Uma estranha insensibilidade tomara conta de mim. Não vestia roupa alguma? Em que estação do ano estávamos? Não tinha frio, mas também não sentia calor, era como se meu corpo não mais se abalasse fosse com que fosse. O sol continuava me aquecendo. Cada vez mais eu brilhava, até que comecei a derreter, lentamente, gota a gota. Olhei e não tinha mais meus pés. Onde estavam as minhas mãos? Em poucos minutos já era só um tronco com lágrimas densas rolando da face sobre os seios e barriga. Não tinha mais olhos, o nariz já estava desforme, a boca, sem lábios. Dei-me conta de que, em poucos minutos, eu não mais existiria. Ouvi os gritos felizes de crianças que acharam uma pequena, minúscula, poça de um líquido dourado que, em seguida endureceu e transformou-se num belo pingente com o retrato de uma mulher. Agora eu era um pingente!

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Mergulhão

Estava mergulhada na leitura de uma peça de teatro quando ouvi uma voz masculina forte gritar: "Um pássaro, um pássaro!" Não seria estranho se não estivéssemos à beira do mar de uma praia extremamente movimentada. A última frase que li foi:" Não se pode voltar atrás." Tirei os olhos do livro, levantei o corpo e mexi a cabeça de uma lado para o outro à procura do pássaro que devia ser de um tipo muito incomum. Neste momento, ouvi a mesma voz: "Ele mergulhou! Cadê ele?" Estas palavras me fizeram levantar da cadeira preguiçosa onde estava deitava e pegava sol enquanto lia. Vi, então que várias pessoas, entre elas, algumas crianças, corriam para a água. Buscavam acompanhar o lindo pássaro negro que, como um submarino, ora aparecia, ora desaparecia. Quando vinha à tona, via-se apenas um elegante pescoço que sustentava uma cabeça igualmente distinta que olhava para todos os lados sem demonstrar importar-se com os comentários em torno de sua "excelência". Transparecia segurança no que fazia. Sabia o que queria, estava focado em sua tarefa. De repente, um enorme pato entrou água a dentro, levantando as pernas, sucudindo as asas e emitindo sons assustadores. Foi o que bastou para nosso mergulhão levantar voo e sumir no céu azul. O pato, um rapaz metido a valentão, saiu da água, passando por todos que apreciavam a cena rara, de nariz em pé como se tivesse feito grande coisa. Todos baixaram a cabeça e, aos poucos, foram voltando aos seus lugares, as suas atividades. Um vento de tristeza levou a visão final de nosso ilustre visitante. Voltei para minha cadeira, acomodei-me, abri o livro e passei os olhos pela página marcada, atentamente, na tentativa de descobrir onde parara. Achei: "Não se pode voltar atrás". E não é?

sábado, 21 de janeiro de 2012

Desabafo de uma anciã

Falava. Não ouviam!
Explicava. Faziam que não entendiam!
Dirigia-se diretamente a um deles. Não falou com ninguém!
Por que não disse?
Por que não explicou?
Falou, disse, explicou
Não ouviram.
Não conseguiram se dar conta de que alguém falava com eles!
Quando reclamava que já falara, já explicara, já pedira, já contara... estava louca, fazia drama sempre. Que saco!
Que saco, que drama diga ela!
Qual o prazer de conviver quando o "con" simplesmente não existe. O que existe é uma via de mão única, onde tudo provém de um único lugar.
No entanto, o uso de tudo que há no ambiente, resultado de muito trabalho e dedicação apesar da idade, é completo. Tipo aquela música do Chico Buarque "Foi chegando de mansinho... se apossou feito um posseiro..." A posse vem acontecendo de tal forma que, quando se der conta nada mais terá a cara dela. Onde estará a sua casa? Onde estarão as suas coisas? Onde estará o seu silêncio? Onde estarão as suas vontades?
E chegará o dia em que não mais se reconhecerá, pois estará à mercê dos desejos dos outros, à disposição dos outros.
Outros estes que nasceram dela!
Mas será que só porque colocou alguém no mundo deve ser obrigada a aguentar tudo em nome do tal amor materno? Saint Exuperrit não colocaria aquelas ideias em sua obra se tivesse vivido hoje e convivido com os filhos e netos de hoje!!!!
Ah! E quando todos se reúnem? A sensação que ela tem é de que devem pensar que é um ser extraterreno que não entende nada desses assuntos deles. E se não entendesse, custava lhe explicar? Afinal, ela não faz mais parte dessa família? Às vezes, pergunta-se: "O que estou fazendo aqui nesta festa, neste almoço? Nem sequer olham pra mim?"

Missão?

O caminho está escuro. Todo e qualquer movimento em busca de uma saída parece em vão. A vida tem sido assim, cheia de caminhos tortuosos, cheia de obstáculos a serem transpostos, cheia de feras a serem vencidas. As traves têm sido ultrapassadas, as curvas dos caminhos não impedem o curso, os "leões" abatidos, um a um, com ou sem esforço, porém dessa vez é diferente, tudo conigura dificuldade. Será o leão mais feroz, a pedra do caminho maior? Não, é cansaço de, apesar de toda a luta, não conseguir resolver uma das situações, a mais grave. Tem gente que perde para o corpo, outros perdem para a ignorância, a fome abate muitos; ela está perdendo para as drogas. Sim, essa droga tão procurada, tão usada, tão enaltecida pelas últimas gerações! Contra ela não há o que se fazer. Ela é a mais forte das feras, o caminho mais tortuoso, o obstáculo tão grandioso que nada de bom consegue brotar depois dela se instalar. Até quando nossa amiga terá de viver em meio a essa triteza, em meio a esse desânimo, em meio a esse egoísmo diabólico do poder das drogas?