Nada fazia com que aquela criança parasse de chorar. Ela e sua mãe estavam sentadas, exatamente atrás de mim. O que seria de meu voo depois de ter tido uma noite anã, com um sono de três horas apenas e, agora, ter de enfrentar um dia inteiro ali, como sardinhas na lata, andando sobre nada, só nuvens abaixo de nós. Havia pessoas de todos os tipos e de diferentes origens. Se este fosse um invento para garantir a existência da raça humana, por motivo de alguma ameaça à Terra, estaríamos mal, pois poucos se falavam. A maioria mantinha-se em seu próprio mundo, uns assistindo à televisão, que a modernidade já permitia, encrustada na poltrona do passageiro da frente, outros jogando games, escutando música, dormindo, eu escrevendo e ela chorando.
O descendente de orientais, hoje já nem se consegue definir exatamente de que região tamanha é a mistura entre as raças, levantou e foi ao banheiro. Notei que não foi muito rápido. Ao voltar, fixou os olhos no meu netbook como se estranhasse eu estar escrevendo. Quando sentou, vi o porquê de seu olhar, pois ao reclinar o encosto, fez com que meu brinquedo ficasse sobre meu colo, ele sentava exatamente no banco a minha frente. Mantive a mesinha aberta apesar disso era mais confortável. A garotinha agora dava longos suspiros entre momentos do choro.
A mulher que estava a minha direita falou comigo e me mostrou que estava saindo sangue de seu nariz. Disse a ela que colocasse uma bucha de guardanapo de papel e ficasse com a cabeça levantada. O que era difícil, pois ela não parava um minuto, mexia na bolsa, pegava a caneta, tossia, colocava os óculos, tirava-os e assim foi. Acho que o tal sangue parou porque não mais me interrompeu, baixou os olhos e o corpo e passou a escrever. Pensei: tenho concorrente, embora seja a caneta! Em seguida deu uma virada e vi que ela preenchia um daqueles exercícios matemáticos de quebra-cabeça. No mínimo, tinha medo de começar a caducar. E a criança atrás de mim soluçava baixinho como se já estivesse cansada.
Nesse momento, o comandante falou em alto volume, dando-me um susto tão grande que dei um grito. O vizinho da esquerda, rapaz, provavelmente de origem germânica ou italiana, forte, pernas grossas, era o que eu via com mais distinção devido a sua posição em relação a mim, ao ouvir o meu grito me olhou com um lindo sorriso. Lindo ou irônico? Tanto faz porque ele voltou a fazer o que fazia, ou seja, exercitava também o cérebro, jogando um game de cartas na pequena tela a sua frente. Por incrível que pareça, a menina, cujo choro havia quase parado, voltara a berrar desesperadamente.
Um outro senhor, com ar de árabe ou turco, passou por mim com muita pressa, quase levando meu braço junto. Do outro lado, no outro corredor, uma senhora, vestida de saia xadrez, que lembrava os escoceses, também passou correndo, dirigindo-se ao fundo do avião. O rapaz a minha esquerda levanta e vai para o mesmo lugar, a moça que sentava a seu lado, de cujo rosto eu nem tinha ideia saiu da poltrona e seguiu os outros. Notei que a mãe da menina chorona finalmente acordara e dirigia-se para o mesmo lugar que os outros, levando a menina ao colo. As filas dos banheiros estavam enormes, havia muita gente a aguardar para ocupar as privadas. Ao longe, ouvia os gemidos da garotinha.
O almoço havia sido servido fazia uma hora e meia, mais ou menos. Estava maravilhoso. Todos elogiaram e comeram muito, afinal o prato principal era novilho biológico estufado com arroz de cogumelos ou bacalhau com creme e espinafre. Eu e minha companheira de fila havíamos comido bacalhau, todavia muitas pessoas deram preferência ao novilho, talvez não gostassem daquele fruto do mar. O avião agora estava totalmente no escuro, apesar de ser dez e meia da manhã. Lá fora havia uma claridade que doía os olhos, razão para o comandante mandar fechar as janelas. Eu, como queria continuar essa história, acendi a luzinha em cima de mim. O silêncio começava a tomar conta do ambiente, os que levantaram já tinham voltado aos seus lugares, a maioria parecia dormir, estranho. E a garota, agora, em pé, em cima dos joelhos da mãe, suponho, dava tapinhas em minha cabeça e gritava mamãe!
Passou-se mais uma hora, o ronco do motor do avião tomara conta de meus ouvidos. Não ouvia a menina também, tudo parecia desligado. Foi, então que o comandante, mais uma vez, anunciou que em meia hora estaríamos chegando ao aeroporto de Guarulhos, em São Paulo. As luzes da aeronave foram acesas, e ... ninguém se mexeu. Nem mesmo os “aeromoços e aeromoças”, era assim que eu chamava, é difícil mudar alguns termos só porque a moda nos faz mudar. Comecei a observar e constatei que as pessoas não estavam dormindo, estavam mortas, inclusive a mãe da menininha chorona que agora dormia tranquila sobre o peito da defunta. Algum de vocês já comeu novilho biológico estufado?