quinta-feira, 29 de março de 2012

Lugar errado!

Foi chegando de mansinho, meio desconfiada. Tinha certeza de que o lugar era aquele, mas não via ninguém conhecido. Abriu o enorme portão de ferro sob a melodia da falta de lubrificação e foi entrando passo a passo. A noite já vinha chegando e as sombras davam ao local um ar de mistério. Bem ao fundo do jardim, já perto do prédio, havia uma luz. Devia ser lá. Continuou seu caminho e, à medida que avançava, ia ouvindo, cada vez melhor, o som de pandeiros. Sim, pandeiros! Ao chegar mais perto, avistou uma roda de mulheres sentadas em cadeiras de praia brancas, cada uma com um pandeiro na mão. Todas vestiam amplas saias estampadas, blusas brancas e lindos colares caídos sobre os seios. Todas tocavam ao comando de um homem. Ele, de camisa e boné vermelhos, batia no seu instrumento e incentivava as alunas. Sim, as alunas. Ela havia chegado num espaço onde acontecia aula de pandeiro! Você sabia que isso existe? Pois nossa amiga foi-se chegando e, a cada mudança de ritmo, saía cantando alguma música que se encaixasse. Estava na maior alegria, feliz da vida em fazer parte daquele grupo, mas estava no lugar errado. Foi, então, que ouviu chamarem seu nome. Seu destino não era aquele, era mais adiante, na casa ao lado! Despediu-se e foi fazer o seu trabalho. (Vocês sabiam que há aulas de pandeiro no Museu do Trabalho aqui em Porto Alegre?)

segunda-feira, 26 de março de 2012

Eu moro numa cidade (3)

Eu moro numa cidade que, quando está de aniversário, presenteia seus moradores com mimos tão preciosos que encanta e satisfaz os mais diversos gostos. Eu moro numa cidade que faz festa todo o mês de sua criação e, durante este tempo, alegra a todos. Eu moro numa cidade em que num domingo pode-se ir à Redenção e lá assistir a um concerto com o pianista Arthur Moreira Lima, que não só nos delicia com sons e arranjos maravilhosos, mas ainda nos dá uma aula de história da música. Eu moro numa cidade em que no seu aniversário pode-se assistir a peças de teatro sem gastar um tostão. Eu moro numa cidade em que no final da tarde, à beira do Lago Guaíba, para nós sempre rio, pode-se, fechando os olhos, voltar no tempo e ouvir as músicas que marcaram a trajetória de nossa maior estrela, ela, Elis Regina, agora dividindo o espaço sideral com outras de menor brilho. Enfim, hoje a minha Porto Alegre está de aniversário, e eu só tenho a agradecer toda a felicidade que ela me dá. Parabéns, minha linda! Obrigada por ser como tu és. Alguém quer vir morar comigo? Na minha cidade?

A gente é de casa!

A gente é de casa, disse aquela voz que não parecia de ninguém conhecido. Pelo jeito era mais de uma pessoa, senão não falaria "a gente". Mas por que àquela hora? O que alguém teria de tão importante para precisar entrar em nossa casa, sem querer aguardar até a manhã seguinte. A noite estava fria, todos já haviam ido para a cama e as luzes já estavam apagadas. Após as batidas insistentes na porta da frente, meu pai levantou-se e, lentamente, dirigiu-se à sala. Acendeu a luz que começou a piscar pausadamente como se fosse apagar a qualquer momento. Meu pai não abriu nem a janela lateral da porta, porém com energia perguntou: "Quem está aí? O que quer?" Meu irmão e eu, a essas alturas já estávamos atrás dele e nossa mãe nos seguia. Quanta curiosidade e...medo! Ao ouvirmos a resposta, meu pai fez menção de abrir, então. Porém, mamãe, mulher mais desconfiada, pegou-o pelo braço, impedindo-o. Neste meio tempo, meu irmão, que sempre fora metido a corajoso, driblou a mamãe, passou no meio das pernas de papai e, quando vimos, a porta estava escancarada. São os coelhos! gritou meu irmão. Até hoje não entendi muito bem o que se passou naquela noite.

sábado, 24 de março de 2012

Eu moro numa cidade

Eu moro numa cidade em que, quando o outono chega, a gente encontra árvores lindas, cheias de flores que se assanham antes do tempo, colorindo de rosa os nossos sonhos. Eu moro numa cidade em que há tanos pássaros que até os papagaios ousam berrar no amanhecer e no anoitecer como se quisessem compensar a ausência dos galos nos dias de hoje. Eu moro numa cidade que tem um pulmão enorme, chamado Parque Farroupilha, onde podemos fazer muitas coisas entre elas caminhar à sombra das árvores ou ao sol, permitindo-nos a escolha. Eu moro numa cidade em que, aos sábados pela manhã, perto do pulmão dela, acontece uma feira de produtos orgânicos onde podemos comprar não só um mel maravilhoso, mas qualquer verdura ou legume da época. Eu moro numa cidade onde há tantas atrações culturais que nos obrigam a escolher entre uma e outra. Eu moro numa cidade que me deixa tão emocionada cada vez que saio a andar por seus cantos que acabo fazendo homenagens feito estas, sim estas pois, se quiserem, podem ler outro pequeno texto a respeito dos encantos da minha Porto Alegre que fiz, acho que, em maio de 2010. Alguém quer vir morar comigo? na minha cidade?

sábado, 10 de março de 2012

Curtinha, mas intensa!

Ai, meu Deus, por que ela fez isso? Por que não se controlou? As coisas nunca mais seriam as mesmas depois deste trágico evento. Todos estavam pasmos, calados. A festa estava tão boa até que aconteceu essa desgraça. A calça de Marinho, a toalha de linho da mesa não tinham mais o tom alvo e o frescor do novo. A atitude de Mimosa havia deixado nelas uma marca indelével. Ele passou as mãos no peito, e elas sentiram o calor do líquido que, agora, já não enganava ninguém, sugeria grande confusão. A culpada permanecia congelada ainda com o instrumento do episódio na mão. O suor escorria em seu rosto, sua boca tremia sem cor, enquanto de seus olhos começavam a escorrer lentamente, uma a uma, lágrimas que não transpareciam se ela estava arrependida ou com medo. O atingido, com dificuldade, levantou-se, empurrando para trás a cadeira que acabou batendo na cristaleira. O vidro da mesma se quebrou e taças de cristal rolaram pelo chão, aumentando mais a tensão do momento. Meio tonto, cambaleando, o marido com os olhos fulminantes, passo a passo, foi até sua mulher e, agarrando com as duas mãos os braços dela... "Não te preocupes, querida, amanhã mesmo mando tudo para a lavanderia. Pega outra garrafa de vinho!"

domingo, 4 de março de 2012

Beleza e juventude eternas

Finalmente chegamos a terra firme. Havíamos navegado por muitas horas em busca da tal ilha onde poderíamos encontrar a sementinha da juventude eterna. Lenda ou verdade? Nenhuma de nós já havia se encontrado com alguém que fizera uso da tal frutinha. Éramos em quatro mulheres, bem vividas, com muitas experiências de vida. O que nos fazia ir atrás desse tipo de promessa? A beleza eterna? O medo da não aceitação? Qual a importância da aparência? Verinha, por exemplo, nunca fora uma beleza, no entanto juntara-se a nós como se não quisesse perder o pouco que tinha. Já Ana Maria sempre fora bela, meio na base da tecnologia, com muitas cirurgias e tratamentos modernos, mas bem bonita. Ela também se entusiasmou com o aceno de juventude eterna. Marilda parecia não se preocupar com nada, porém não queria perder essa aventura. Queria estar junto. Eu..., eu nem pensei muito, juntei-me a elas e vim. Lentamente fomos arrastando nossos pés na areia quente, fina, branca. Adentramos a mata que estava a nossa frente, sem soltarmos as mãos, afinal, ninguém queria perder-se. O sol ainda estava alto e iluminava relativamente bem o lugar. Chegamos a uma clareira, onde nossos olhos se enebriaram com a beleza do campo coberto de lavandas. Ah, que perfume! Atravessamos aquele espaço mágico, penetramos em outro mato e, em seguida, avistamos, ao longe, uma espécie de cerca viva. Aproximamo-nos e avistamos por entre os galhos cheios de espinhos a bela árvore coberta de sementes , frutinhas vermelhas, organizadas em cachopas. Não tivemos dúvidas, apesar da dificuldade, fomos cortando um galho ali, outro aqui e, com muitos arranhões, alcançamos a tão sonhada promessa. Avançamos sobre ela, arrancamos os pequenos frutos e, completamente sem modos, fomos enchendo nossas bocas, esfregando o suco em nossos rostos, corpos, cabelos. Paramos, olhamo-nos e cada uma de nós tinha o sorriso mais satisfeito do mundo. Era a glória, a gente estava linda e jovem. Fizemos o caminho de volta, cantando, pulando, brincando. Corremos até a praia,... vazia! Onde estava o nosso barco? Era aquela a nossa saída? Não havíamos nos enganado de direção? Hoje, acho, faz muito tempo que aqui estamos. Lindas, jovens e sós!

quinta-feira, 1 de março de 2012

Num Voo

Nada fazia com que aquela criança parasse de chorar. Ela e sua mãe estavam sentadas, exatamente atrás de mim. O que seria de meu voo depois de ter tido uma noite anã, com um sono de três horas apenas e, agora, ter de enfrentar um dia inteiro ali, como sardinhas na lata, andando sobre nada, só nuvens abaixo de nós. Havia pessoas de todos os tipos e de diferentes origens. Se este fosse um invento para garantir a existência da raça humana, por motivo de alguma ameaça à Terra, estaríamos mal, pois poucos se falavam. A maioria mantinha-se em seu próprio mundo, uns assistindo à televisão, que a modernidade já permitia, encrustada na poltrona do passageiro da frente, outros jogando games, escutando música, dormindo, eu escrevendo e ela chorando. O descendente de orientais, hoje já nem se consegue definir exatamente de que região tamanha é a mistura entre as raças, levantou e foi ao banheiro. Notei que não foi muito rápido. Ao voltar, fixou os olhos no meu netbook como se estranhasse eu estar escrevendo. Quando sentou, vi o porquê de seu olhar, pois ao reclinar o encosto, fez com que meu brinquedo ficasse sobre meu colo, ele sentava exatamente no banco a minha frente. Mantive a mesinha aberta apesar disso era mais confortável. A garotinha agora dava longos suspiros entre momentos do choro. A mulher que estava a minha direita falou comigo e me mostrou que estava saindo sangue de seu nariz. Disse a ela que colocasse uma bucha de guardanapo de papel e ficasse com a cabeça levantada. O que era difícil, pois ela não parava um minuto, mexia na bolsa, pegava a caneta, tossia, colocava os óculos, tirava-os e assim foi. Acho que o tal sangue parou porque não mais me interrompeu, baixou os olhos e o corpo e passou a escrever. Pensei: tenho concorrente, embora seja a caneta! Em seguida deu uma virada e vi que ela preenchia um daqueles exercícios matemáticos de quebra-cabeça. No mínimo, tinha medo de começar a caducar. E a criança atrás de mim soluçava baixinho como se já estivesse cansada. Nesse momento, o comandante falou em alto volume, dando-me um susto tão grande que dei um grito. O vizinho da esquerda, rapaz, provavelmente de origem germânica ou italiana, forte, pernas grossas, era o que eu via com mais distinção devido a sua posição em relação a mim, ao ouvir o meu grito me olhou com um lindo sorriso. Lindo ou irônico? Tanto faz porque ele voltou a fazer o que fazia, ou seja, exercitava também o cérebro, jogando um game de cartas na pequena tela a sua frente. Por incrível que pareça, a menina, cujo choro havia quase parado, voltara a berrar desesperadamente. Um outro senhor, com ar de árabe ou turco, passou por mim com muita pressa, quase levando meu braço junto. Do outro lado, no outro corredor, uma senhora, vestida de saia xadrez, que lembrava os escoceses, também passou correndo, dirigindo-se ao fundo do avião. O rapaz a minha esquerda levanta e vai para o mesmo lugar, a moça que sentava a seu lado, de cujo rosto eu nem tinha ideia saiu da poltrona e seguiu os outros. Notei que a mãe da menina chorona finalmente acordara e dirigia-se para o mesmo lugar que os outros, levando a menina ao colo. As filas dos banheiros estavam enormes, havia muita gente a aguardar para ocupar as privadas. Ao longe, ouvia os gemidos da garotinha. O almoço havia sido servido fazia uma hora e meia, mais ou menos. Estava maravilhoso. Todos elogiaram e comeram muito, afinal o prato principal era novilho biológico estufado com arroz de cogumelos ou bacalhau com creme e espinafre. Eu e minha companheira de fila havíamos comido bacalhau, todavia muitas pessoas deram preferência ao novilho, talvez não gostassem daquele fruto do mar. O avião agora estava totalmente no escuro, apesar de ser dez e meia da manhã. Lá fora havia uma claridade que doía os olhos, razão para o comandante mandar fechar as janelas. Eu, como queria continuar essa história, acendi a luzinha em cima de mim. O silêncio começava a tomar conta do ambiente, os que levantaram já tinham voltado aos seus lugares, a maioria parecia dormir, estranho. E a garota, agora, em pé, em cima dos joelhos da mãe, suponho, dava tapinhas em minha cabeça e gritava mamãe! Passou-se mais uma hora, o ronco do motor do avião tomara conta de meus ouvidos. Não ouvia a menina também, tudo parecia desligado. Foi, então que o comandante, mais uma vez, anunciou que em meia hora estaríamos chegando ao aeroporto de Guarulhos, em São Paulo. As luzes da aeronave foram acesas, e ... ninguém se mexeu. Nem mesmo os “aeromoços e aeromoças”, era assim que eu chamava, é difícil mudar alguns termos só porque a moda nos faz mudar. Comecei a observar e constatei que as pessoas não estavam dormindo, estavam mortas, inclusive a mãe da menininha chorona que agora dormia tranquila sobre o peito da defunta. Algum de vocês já comeu novilho biológico estufado?