terça-feira, 21 de abril de 2015

Um domingo de Inocência

        Saiu de casa, batendo a porta como se não fosse nunca mais voltar. Cansara de tudo, de seus móveis, de sua vista, de sua comida, da sua cama. Acordara de mal com a vida, pensou. Pegou o elevador, ficou aliviada que estivesse vazio, não precisaria trocar cumprimentos com ninguém. No térreo, percorreu o longo corredor que terminava na grande porta de ferro, abriu-a e foi-se. A rua estava tranquila, quem não estava tranquila era ela, Inocência Maria do Canto Rocha. Abriu a porta do carro, atirou a bolsa no banco do carona e aboletou-se como se fosse fazer a viagem de sua vida.
        Depois de alguns quarteirões, deu-se conta de que não tinha a menor ideia de para onde ir. Deixou-se levar, sabe-se lá por que. Ao virar à direita e entrar numa avenida avistou, ao longe, sentada, encostada num muro uma pessoa. Aquela visão tirou nossa motorista de seu umbigo. Foi seguindo com o olhar fixo na criatura. Num relance olhou a sinaleira e freou. Ali estava Inocência, tendo à esquerda uma imagem com a qual não gostaria de ter se encontrado: um homem negro, muito preto reluzia ao sol. Vestia abrigo, na noite anterior havia feito um friozinho, estava imóvel, tórax recostado, pernas entre abertas, calçava um bom tênis. Sua bochechas pareciam inchadas, e o seu olhar...ah o seu olhar! Seu olhar era distante, era pensante, era emocionante. O sinal abriu e o homem sumiu das vistas dela.
        Mais dois quarteirões, faixa de segurança sem sinaleira, homem atravessa sem nem olhar para os lados, fazer o aceno com a mão nem pensar. Inocência Maria freou de novo. Enquanto aguardava o desfile da ilustre criatura, sua mente lhe peguntava o que estaria acontecendo com as pessoas? Falta de amor próprio, falta de objetivo, falta de esperança, desamor? O homem passo a passo foi de um lado a outro da rua sem olhar para o carro dela, muito menos para ela. E o "muito obrigado" não existe mais? É,  não!
        Seguiu levada pelas rodas quando sentiu que estava sendo pressionada por um carro. Para que ficar pressionando se as outras faixas estavam livres? Buzina nervosa, ronco do motor. Desta vez ela não freou, trocou de faixa e ficou cuidando para ver quem era. Era um casal, nem muito novo, nem  muito velho. O carro nem muito velho nem muito novo. A caroneira não olhou para os lados, mas o motorista, ao passar por nossa amiga, lançou-lhe um olhar como se quisesse matá-la com as faíscas. O carro branco, batido na lateral e na traseira sumiu em alta velocidade.E a cabeça de Inocência Maria se pôs mais uma vez a pensar em qual a vantagem de ter esse tipo de atitude no trânsito.
        Quando viu, estava entrando no clube que costumava frequentar. Achou bom, tomaria um pouco de sol. Que maravilha! Pouca gente, sem vento, dia não muito quente, silêncio gostoso. Era isso! Sim, havia acertado. Começou a sentir o frescor da felicidade enchendo seu coração. Sentou-se numa cadeira espreguiçadeira e deixou o calor dos raios solares penetrarem-lhe as células de seu rosto. Mexeu o corpo tentando ajeitar-se e acabou deitando. Sensacional! Nada melhor do que se esticar ao ar livre sem fazer nada. Ouviu o arrastar de chinelos. Sempre odiou arrastar de chinelos. Por que não caminhar de maneira a não fazer barulho? Que coisa mais relaxada. Deve ser um homem gordo. Era uma moça de biquíni, chapéu, óculos e chinelos. O celular na orelha. Inocência conclui: está esperando alguém.
        Tudo estava às mil maravilhas quando ouviu gritos masculinos chamando "Carol". Era o namorado da relaxada. Ainda bem que foram se instalar bem longe. Porém o clube estava quase vazio, e o casal resolveu discutir a relação. Pode? Poder não deveria poder, mas eles encenaram a mais idiota das discussões. A voz da moça era mais fraca, mas o cara era o melhor exemplo de alguém sem a mínima educação, mas com a voz clara, forte e muito bem colocada. Poderia ser ator de teatro de rua. Além disso, era um bobalhão, tendo em vista as ideias que expunha. E Inocência ouvindo tudo. Acabou levantando e indo embora.
        Novamente foi-se deixando levar e quando se deu conta estava em casa. Entrou, largou a bolsa sentou-se na poltrona preferida e pensou no homem negro reluzente e viu a inocência no olhar dele, inocência de ter sido levado a beber demais, inocência de não ter a malícia pra enfrentar as maldades da vida. Veio-lhe à mente o atravessador da rua e concluiu que ele deveria ter brigado com alguma Maria ou estava atrasado apara o encontro com  uma Maria.  Fechou os olhos e enxergou o carro branco agora demolido num canto. E pensou que Carol deveria ser um rocha para aguentar aquele bosta. Como era bom estar em casa!