domingo, 3 de abril de 2022

A menina encantada!




 

      Aquele muro, aquele portão! Eles a separavam de uma vida da qual não tinha a mínima ideia. Curiosidade? Tinha! Mas não lhe faltava nada. Nascera ali, fora criada ali, tivera uma infância divertida e cheia de surpresas com a natureza que fazia parte do seu mundo que não era pequeno. Podia correr, podia ir a diferentes recantos sem repeti-los por diversos dias. Tinha amigos! Sim, sabia tudo sobre as formigas, conhecia os pássaros e suas rotinas, identificava cada tipo pelo cantar, pela cor, pelo tamanho. Sabia o nome de todos. Como? Ah, o jardineiro lhe ensinava, apesar de ter ordens para não conversar muito com ela. A garota nem se dava conta disto. Ficava feliz com os ensinamentos e pronto.

      Havia um lago. Não sei se artificial ou natural, mas muitos tipos de peixes e tartarugas habitavam naquelas águas. E a menina conhecia cada um. Alguns até nomes tinham. Na verdade conhecia poucos nomes, então, repetia o nome da moça que cozinhava, adicionando números. Os números ela sabia, pois alguém, quando ela era bem pequena a ensinara a contar. Contava os passos, contava os móveis, contava as nuvens. Este alguém um dia sumiu. Nada lhe disseram, e ela achou que a vida era assim.

      Não assistia a programas de televisão, porque aparelho não tinha. Não lia porque não havia nada para ler, e ela nem saberia. Não ouvia música porque não tinha rádio nem qualquer outro instrumento que fizesse som. Todavia, a garota cantava, cantava imitando os sons que ouvia. O canto dos pássaros, o barulho da chuva, o rumor que vinha por cima do muro. Era do mar que ela não tinha a menor ideia de que existisse, de como era! Às vezes miava afinada, e os gatos da casa saiam em procissão atrás dela, e ela amava aquilo. Na maioria dos dias cantava antes dos galos pois acordava com os primeiros raios de sol. 

      Numa noite, quando já tinha uns dezesseis anos, houve um grande temporal que derrubou uma boa parte do muro, pois já estava muito velho. Ao parar a chuva, a mocinha saiu a caminhar pelo grande pátio e chegou ao muro desabado. Foi pisando os pedaços dele caídos, e, atônita, foi vendo tudo que havia do outro lado. Atravessou aquela fronteira e se botou a andar. Continua até hoje, sem saber quem é, sem dar-se conta de sua existência, lendo um novo mundo a cada lugar por onde passa. O jardineiro e a cozinheira nunca mais souberam dela.

     O povo a observa, a alimenta, dá-lhe abrigo, mas ela volta a andar, emitindo os sons que aprendeu. Uma vez ou outra, conhece um novo e passa a emiti-lo, inofensiva, encantada.