segunda-feira, 28 de maio de 2012

Num trem na Escócia

O balançar do trem andando lentamente perto da próxima estação me trazia o gosto de final de carrossel. Fazia meu corpo deitar ora para um lado, ora para o outro. O sono que ia tomando conta de mim trazia-me a sensação de embriaguez. Era noite e nada se via lá fora. Estávamos indo em direção à Escócia onde faríamos um turismo em duas cidades. A primeira seria Glasgow, dizem cidade moderna e uma das mais populosas e depois viríamos a Edinburgh. A minha ansiedade em torno da Escócia tinha fundamento nas histórias que desde pequena ouvia, nos romances de Conan Doyle que lia e nos filmes que insistem em fomentar e ratificar as lendas. Lendas? Estávamos em duas: uma amiga e eu, velhas conhecidas e trabalhadoras da mesma Escola. Hoje estávamos as duas aposentadas e tentando preencher o tempo, passeando pelo mundo. Havíamos passado três dias em Paris e de lá tomamos um trem que nos levou a Londres. Nesta, trocamos de trem e agora nos balançávamos nesse vagão. Ao passarmos por Newcastle, muitas pessoas desceram e minha amiga foi sentar-se em um banco que ficara vazio. Não mais a vi. Provavelmente havia pegado no sono. Fizemos ainda mais duas paradas, o trem foi esvaziando mais, e eu fui me sentindo sozinha. A princípio, não dei muita bola, afinal, normalmente, acontece desta forma quando o nosso destino é o mais distante. Olhava para todos os lados, porém só via um menino que, de tempos em tempos, vinha perto de mim, mas não me olhava. Achava engraçado, ele era lindo, de cabelos quase brancos, de um brilho impressionante, e demonstrava muita saúde. Seus olhos eram de um azul cor do céu, do céu brasileiro, porque o daqui era quase sempre cinza. Ele corria até perto de um dos bancos, dava uns gritinhos e voltava para seu lugar que, provavelmente, era em outro vagão, pois ele sumia quando a porta se abria automaticamente. Eu não conseguia entender qual o motivo de sua vinda, nem de sua alegria. Assim foi por alguns minutos. Pelo autofalante foi anunciado que a próxima estação seria Glasgow, onde todos deveriam descer. Onde estaria minha amiga? Levantei-me, passou por mim o menino quase me atropelando. Parou de novo perto de um dos bancos perto de mim, sorriu, gritou e correu de volta, sumindo pelo mesmo lugar de sempre. Peguei a minha mala no compartimento especial e vi que a de minha amiga lá continuava. Onde andava aquela danada. Estaria ela fazendo alguma brincadeira comigo? Ela gostava desse tipo de alegria infantil! E eu também! No entanto, o trem parou, desci e comecei a caminhar pela estação em busca de alguém que me ajudasse. Já passava da meia noite, todas as lojinhas e bares da estação estavam fechados. O trem partiu adiante e minha amiga, provavelmente, nele! E agora? Fui em direção ao guichê de informação para tentar resolver o que agora virara um problema. Não havia mais ninguém lá. A quem eu poderia me dirigir se não encontrava mais viva alma? Fui andando lentamente e, à medida que avançava, as luzes iam se apagando. O que eu faria agora? Talvez tentar algum hotel e deixar o caso para outro dia, mas e minha amiga? O que ela faria ao acordar sem mim? Não falava uma palavra da língua local. Tinha de ir atrás de uma solução imediatamente. Saí das dependências da estação e comecei a caminhar pela única rua que conseguia ver. As luzes públicas não estavam acesas, e os moradores, com certeza, já descansavam. Mas onde estavam aqueles que recém haviam chegado? Tudo era tão estranho! Estranho foi, quando ao longe, ouvi uma espécie de grito, mas meio abafado, seguido de uma risada infantil. Fiquei como uma piorra, tentando visualizar quem fazia aquele som, porém, cada vez que era ouvido, parecia vir de uma diferente direção. Estaria eu ficando louca? Parei! E mais uma vez ouvi, agora, com certeza, atrás de mim. Virei-me! Lá estava uma luz pequenina para a qual passei a me dirigir e, quanto mais me aproximava, maior ela ficava. Para surpresa minha, ao chegar bem perto, quando até meus olhos eu tinha de apertar para proteger do brilho, lá estava o menino lourinho do trem que me levou pela mão até uma caverna onde, deitada adormecida, estava minha amiga. Perguntei como ela havia chegado ali e por que ela não estava acordada. O menino, numa língua um pouco diferente do inglês que eu entendia, mas compreensível, disse-me que, no momento em que ela sentou naquele banco de onde saíra uma mulher, tinha se coberto de um pozinho que a fizera dormir. Perguntei por que isso acontecera, e ele me falou que a senhora que tinha levantado dali era uma bruxa. Todo o lugar por onde ela passava, deixava algo para atingir quem ocupasse o mesmo assento, não gostava que tomassem conta de um lugar que ela tivesse estado. Era uma mania dela. A maioria delas não são assim. Minha amiga continuava dormindo. Então perguntei o que deveria fazer para que ela acordasse. Ele disse que o tempo faria passar o encanto. Mas quanto tempo? Eu perguntei. Tudo dependia de cada um. Nesse momento, ela começou a abrir os olhos, e eu me abaixei para tentar falar com ela. Ouvi novamente os gritinhos e risos e não mais vi o menino. Minha amiga levantou e juntas nos dirigimos à estação. O dia já estava amanhecendo e tudo parecia voltar ao seu devido lugar. Nas casas, melhor nos grandes prédios já havia barulho, vozes e luz. Chegamos à estação, onde várias lojinhas estavam abrindo suas portas e lá já estavam, perto dos banheiros as malas, as minhas, e as dela! Minha amiga nunca falou sobre o assunto, nem eu. Continuamos a nossa viagem sem termos uma explicação plausível sobre o episódio. O que mais aconteceria de estranho nas cidades para onde íamos? (Texto escrito em outubro de 2011)

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Onde está o silêncio?

Adoro fechar os olhos e curtir o silêncio do meu apartamento. Sem televisão, sem rádio, sozinha em casa. Sempre fiz isso, desde muito pequena, na minha velha casa, no chalé da praia, em meio as palavras de um Padre numa Missa. Hoje, por volta do meio dia fiz de novo. Sentada em uma das poltronas da sala, desliguei a TV e fechei os olhos. Engraçado o meu querido e emocionante silêncio tinha som de motor de carros, freada de ônibus,latido dos cachorros da vizinhança, berros de um casal de papagaios. Onde estás, meu silêncio? Será que me abandonaste para sempre? Fiquei assim, aguardando que ele chegasse, por um bom tempo. E nesses momentos saboreei novamente as delícias da espera de um amado, as inseguranças de um amor da adolescência, as carícias de um vento no rosto sorridente. Mas o melhor de tudo aconteceu quando me dei conta de que, mesmo em meio aqueles sons indesejados e inesperados, eu ouvia as batidas do meu coração, já quase um velho cansado de guerra, porém forte e faceiro, pronto para enfrentar as batalhas dessa vida cheia de altos e baixos. E então conversei com o meu silêncio, pedi-lhe desculpas, pois já não sentia tanto a falta dele. Ele havia sido substituído pelo maravilhoso silêncio do meu coração!

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Alguém hoje faz isso?

Ele foi-se chegando lentamente, com aquele seu jeito único e silencioso. Trazia nas mãos umas folhas de papel dobradas. Pediu-me licença para atrapalhar o meu trabalho, sentou-se numa cadeira de forma que ficamos como se estivéssemos numa daquelas conversadeiras usadas muito antigamente. Com as mãos trêmulas foi abrindo uma por uma as dobraduras e vi que eram três folhas de papel de carta, tipo seda, as três totalmente escritas de um lado. A cor já era amarelada, e a tinta já estava quase apagada, mas a caligrafia era algo incrivelmente simétrico, parelho, perfeito. Mais uma vez pediu-me licença, agora para ler aquela que tinha sido a terceira carta escrita, num espaço de doze horas, para a moça que havia despertado em seu coração a chama do amor eterno. Começou a ler com a voz firme de um adolescente, dando-me um olhar de quando em vez. A comparação do que ele sentia ao que os mais diversos pares famosos reais ou da ficção sentiam demonstrava o tamanho do amor e da cultura daquele homem admirável. E assim foi passando, através de sua voz, Romeu, Julieta, Desdêmona, Othelo, Chopin, George Sand, Hamlet e outros, sempre e cada vez declarando o quanto ela, a amada, lhe enchia de inspiração e confiança no futuro. Quando terminou a leitura, apontou para um retrato na parede ao fundo de um corredor e disse que ela era culpada de tudo que havia escrito. Agradeceu a minha atenção, dobrou as folhas, levantou-se e foi para seu quarto, onde talvez seja o lugar que tenha escolhido para aguardar o dia em que com ela voltará a se encontrar. Deixou-me ali pasma, embevecida com tanto amor e tanta cultura que um homem nos seus oitenta e três anos ainda consegue manter intactos. Eu é que agradeço a lição, seu Rubbo!

terça-feira, 8 de maio de 2012

Aquele corredor!

Eu vinha a passos largos, nem sei bem a razão. Fazia anos que não voltava àquele bairro, àquela rua. À medida que andava, dava-me conta de que tudo estava mudado. Não conseguia identificar os prédios, as pessoas, a árvore que teimosa crescia entre a parede de um novo edifício e um poste de luz. Aliás, este último não mudara. Até a calçada não era mais a mesma, lajotas grandes se entrometeram e tomaram o lugar das pequenas pedras vermelhas que em combinação com umas mais claras e outras mais escuras compunham um lindo bordado para receber os nossos calçados. De repente, um meia porta entreaberta me fez parar. Era o número 1230. Ouvi a delicada voz da menina de tranças. Ela ria. Espiei e vi, ao longe, o triciclo cor de vinho, rodas com pneus fortes e na direção estava ela, de vestido xadrez rodado, fitas brancas no cabelo, sandálias que faziam força para dar velocidade. Tudo estava esvoaçante, o corredor parecia não ter fim, e ela vinha em sua corrida matinal, na ânsia de aproveitar bem a brincadeira de criança. Eu me deliciava com a visão, sorria sozinha. Mas ela vinha, e vinha, senti que iria bater em mim, porém nada fiz. Ela veio, bateu, rasgou o meu peito, entrou, acomodou-se no meu coração, e eu continuei a minha caminhada, agora com o sorriso da saudade no rosto.

sábado, 5 de maio de 2012

Um dia azul

O azul tomava conta de tudo. O céu, naquele dia, havia acordado num tom iluminado e exuberante. Nem uma nuvenzinha, nem uma manchinha, nem o sol conseguia-se enxergar de onde estávamos. A cadeirinha de praia, confortável, sustentava docemente o corpo dela, vestida também de azul, a combinar com os grandes, mas cegos olhos. Olhos estes escondidos atrás de um par de óculos escuros presenteados por seu sobrinho. Ele também ali estava, de calção listrado de branco, preto e azul, corpo nu e brilhante de suor, numa mão um pano de algodão azul e noutra uma esponja ensaboada... azul. Eu, com meu abrigo e tênis, que ganhara da prima que viajara a Nova Iorque, mais o boné emprestado de meu filho mais velho, tudo azul, aguardava o término do trabalho. Sim, eu chegara ao lugar por volta das dez horas, aguardara um pouco, e, em seguida, o rapaz havia começado o trabalho. Ele ali ganhava o pão de cada dia sob o calor do sol, sob as gotas da água. Ela, sua tia cega, sem ter onde ficar, com ele passava o dia a aguardar o final do dia quando, de mãos dadas, voltavam à casinha de madeira pintada de azul, conforme relato da anciã. Na ansiedade de mulher executiva e quase hiperativa, eu caminhava de um lado ao outro do local, podendo até dizer a metragem do terreno. Fui observando as mudanças de empoeirado para molhado, de molhado para ensaboado, de ensaboado para molhado de novo e mais molhado e, finalmente, vi o pano azul alisar, alisar, alisar até tirar a última gota de água de meu carro...vermelho.