sábado, 24 de janeiro de 2015

Amor sem preconceito!

        Entrei! Ainda bem que os porteiros estavam conversando, não me viram. Sempre tive uma curiosidade enorme. Vejo tanta gente passar para cá de carro, de bicicleta, a pé. E muitos levando cachorrinhos! São tantas ruas, tantas casas. Aquilo ali parece um clube. É, tem umas mulheres, moças bonitas, jogando o tal de paddle. Não vou parar. Os jardins são bem cuidados, tudo limpo. Estou curioso para dobrar numa destas vielas e descobrir se tem algo mais interessante ainda. Na verdade, estou me cansando, acho que estou com fome. O sol está tão quente!
        Esta rua me parece legal. Vou ver! Engraçado! As casas são bonitas, mas todas parecidas. Se eu morasse por aqui me perderia seguido. Cachorrinho da madame preso pela guia numa varanda, olhando para mim. Não adianta latir. Não tenho medo de ti. Nesta outra agora um gato preto metido. Olha só! Tem um colar de strass! Muita frescura!  Nem se mexe, atirado no ladrilho, provavelmente, geladinho. Até que tem sorte!  Eu não gosto de felinos, são sempre preguiçosos. Ora! Não tem saída, tenho de voltar.
        Nossa! Que gatinha! Quer dizer, que cadelinha gatinha! Será que ela vai latir? Vou tentar chegar perto. Está vindo em minha direção, que emoção! Está me cheirando, examinando. Vou ficar bem quieto para ela não se assustar. Ai, meu Deus, está se esfregando nas minhas pernas. Acho que gostou de mim. Vou fazer carinho nela. Assim! Viu! Fechou os olhinhos redondos quase tapados pela franja. Gostou! Alguns bichinhos dessa raça andam com um pregador ou lacinho, segurando os pelos para cima. Esta aqui está bem charmosa e sexy. Hum, a sacudidinha de cabeça que deu agora me conquistou. Como será o nome dela?
        "Bebê, vem pra dentro! Não te metas com estranhos!"
        Ela foi, porém, de vez em quando, parava e dava uma olhadinha para mim. Caminhava dando uma requebrada. Uma danada! Eu não tirava os olhos dela, estava apaixonado. Tinha esperança de nos tornarmos pelo menos amigos. Minha ela nunca seria. De repente a coisinha linda voltou correndo em minha direção. Eu pensei: "Ela quer ser minha!" No entanto, a Bebê tinha dona e era braba a mulher.
        "Bebê! Volta! Não te esfregues neste sarnento!"
        O sarnento era eu? Será? Será que estou com sarna? Uma vez me olhei na vidraça de uma vitrina e me achei até bem bonitinho. Sou preto, pequeno, estou magro, muito magro. Mas sarnento? Já tive um dono. E era bem tratado, até mais gordinho. Não sei direito o que aconteceu. Será que me perdi? Eu saí com seu Inácio. Ele abriu a porta da carro. Fiz xixi e nunca mais o vi. Achei que por aqui alguém me quereria. Acho que não. Parece que só a Bebê me quer. Olha só como passa a língua em mim! Que felicidade!
        "Bebê! Mas que teimosa! Vou te pegar e colocar a guia! Não quero que pegues doenças destes vira-latas!"
        A moça veio, pegou a minha Bebê e a levou para dentro de casa. A minha cadelinha gatinha foi para uma das janelas e ficou me olhando. Olhando para mim! Um cachorro sarnento, vira-latas e sem dono!

       

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Aquelas costas!

        Aquelas costas! Quantas vezes num dia, quantas num mês, quantas nesses anos todos olhando pela minha janela, percorrendo as janelas alheias. Até um binóculo comprei. Nada, absolutamente nada que me agradasse aparecia. Sempre o mesmo: vidraças entreabertas, roupas dependuradas, às vezes, à noite, as pernas de alguém sentado, provavelmente assistindo televisão. Tinha aquele rapaz que, ao final de tarde, vinha à murada da área dos fundos de onde morava e fumava um baseado. Tinha também o que lavava suas roupas de baixo diariamente e o outro cara cujo rosto nunca vi, pois este estava escondido atrás da tela de um notebook, mas suas pernas eram razoáveis. 
        A semana que terminara havia sido de tempo ruim, mas, apesar das chuvas, a temperatura não baixava. O calor castigava  a todos. Nem os papagaios, que normalmente batiam um papo em cima do prédio vizinho ao meu, apareciam. Deviam estar discutindo sobre o clima aboletados em alguma árvore, curtindo uma sombra. A maioria dos moradores havia se mudado para a praia. Felizes os que têm um lugarzinho mais saudável, mais natural, diferente desses pombais onde a modernidade nos fez empoleirar, em vista de segurança. A gente que assim reside, vai de uma nesga a outra de sol para tentar pegar um bronzeado. Sair a caminhar, nem pensar. Vira-se torresmo!
        Eram dez horas da manhã quando acordei, afinal era domingo. Abri todas as janelas para os anjos entrarem e abençoarem meu lar, assim minha mãe ensinou, e deixar o ar da manhã lavar os pensamentos ruins e desgostos dessa vida. O Sol! Sim! O Sol lá estava a iluminar cada cantinho de meu coração. Ele, o Rei não deixava nada feio. Tudo brilhava, tudo parecia cantar a alegria desta vida. E de janela em janela eu fui indo, olhando detalhadamente a paisagem. Até a basculante do banheiro foi forçosamente escancarada e um raio do meu Rei entrou majestoso, arrastando poesia pelos ladrilhos.
         Foi ele, eu tenho certeza, foi ele, o Rei, o Sol a causa daquela visão. Aquela visão que me fez deslumbrar o fogo de uma paixão, que me fez lembrar os melhores carinhos, que me fez ter vontade de passar novamente as mãos numa pela macia. De costas, apoiado numa das janelas visíveis do meu apartamento estava um jovem, expondo seus ombros, seus músculos, suas espáduas, sua cintura fina. Brilhava, brilhava muito! O calor já era tão forte àquela hora que o suor, com certeza, saía-lhe pelos poros e deixava toda sua pele molhada. E isso fez minha mente viajar a um passado distante, mas não esquecido, a um passado muito bem vivido, a um passado que me dá forças para continuar a minha jornada só, satisfazendo-me com o prazer de ver, ao longe, umas costas bonitas de um desconhecido rapaz cujo rosto não tenho a mínima ideia de como seja!

sábado, 10 de janeiro de 2015

Minha mulher

        A noite estava escura apesar da Lua estar na fase cheia. A tarde já havia sido triste, sem sol, com chuvas. O verão chegara de mau humor, trazendo dias febris. Trazia também um céu furioso que, de vez em quando, decidia soltar sua raiva inundando alguns de medo e outros de prazer. De repente a luz apagou, o telefone morreu, a televisão desligou, o refrigerador não mais gelou, o ventilador lentamente deixou de assoprar. Breu! O que fazer?
        Aceitei o convite de minha mulher para sentarmos na sacada. Ali estava agradável. Estávamos casados há mais de vinte anos. Durante esse tempo vimos  e vivenciamos sem parar o desenvolvimento do muitas tecnologias, a maioria na área da comunicação. Nossa filha já não necessitava tanto de nós, já não trocava conosco ideias, já tinha o seu companheiro. Ficamos naquele silêncio perturbador. Aquele silêncio de quem sente vontade de falar, de conversar, mas não sabe como dar início. Sentia que ela, de vez em quando, olhava-me com o canto dos olhos. Um estranhamento tomava conta de nós, não tínhamos mais assunto! E a luz não voltava!
        Com o mesmo impacto que a energia do bairro nos deixara, minha mulher me propôs dizer um texto que há muito ela sabia. Não esperou a minha reação. Desatou a falar com diferentes entonações, revelando diversas emoções. Eu nem me mexia, nem a olhava, tinha medo, medo de que ela estivesse saindo do controle racional de sua ações. E estava com certeza, pois levantou, dirigiu-se ao muro da sacada e, com gestos extravagantes e voz empostada, continuou até o fim a sua apresentação. Isso durou um bom tempo. Ouvi uns cochichos na sacada do andar superior. Eles não tinham viajado, para minha vergonha. Mantive-me estático enquanto ela, minha mulher, aquela que eu havia escolhido para companheira de toda vida, fazia gestos de agradecimento, como se estivesse num palco. Gritava: "Obrigada! Obrigada!"
        A luz voltou, a campainha tocou, eu levantei e fui abrir a porta. Era a vizinha, perguntando se minha mulher estava bem. Não soube o que dizer.