domingo, 19 de agosto de 2018

Tempero da vida


    Um saleiro, uma caixa de fósforos, um vaso com ciclame em flor e uma janela fechada. Fechada para o tempero da vida, para o fogo da paixão, para a beleza do amor.
     Quantas vezes, no infinito da minha curiosidade, penetrei no estreito das venezianas e deitei-me na cama fria de lençóis em desalinho. Ali, sozinha, senti o salgado de teus lábios, o calor de teus afagos e vi-me florescendo tal qual a flor, numa orgia de ilusões, pensando que, talvez, alguém ainda me ame.
   Quantas vezes, depois desses devaneios, ponho-me a rir! Rir da minha cabeça fértil, do meu jeito de lidar com as palavras, do que elas provocarão em cada leitor, rir de felicidade por ver poesia num saleiro, numa caixa de fósforos e numa janela fechada.
     Os ciclames? Os ciclames da minha cozinha? Ah, esses são o tempero do meu alimento: o amor!

terça-feira, 10 de abril de 2018

Roupas ao sol!

     Entrei no quarto e senti a brisa da manhã de outono entrando  pela janela. Um pouco antes, eu havia pendurado ali uma de minhas camisolas, a de que eu mais gostava. Já estava gasta, mas conseguia ainda me acariciar, principalmente, nas noites em que a insônia batia. Colocava-a para arejar, pois tinha medo de lavá-la muito, e acabar perdendo-a para o sabão em pó.
     Parei e, imediatamente, veio uma imagem que fez parte de um tempo de minha vida. Eu já tinha meus filhos e saía com eles todas as manhãs para pegarmos sol. Andávamos até a esquina e dobrávamos à direita. A segunda casa daquele trecho era um sobrado antigo, pintado de amarelo claro com os adornos arquitetônicos, de uma época mais longínqua, e o que era de madeira em marrom. Casa de porta e janela.  E foi aquela janela que veio à minha mente.
     Pela manhã o sol batia na fachada do prédio, e, na hora em que passávamos, a exposição já lá estava no umbral, aquecendo-se, tirando os mofos, melhorando os cheiros, diminuindo as rugas! Eram sapatos, meias, calças masculinas, paletó, tudo preto, lagarteando à vontade, sem vergonha alguma. Às vezes, uma camiseta branca destacava-se e, no inverno, não faltava um cuecão! Minhas crianças gostavam de brincar de adivinhar o que encontraríamos a cada dia! 
     Havia a respeito uma certa curiosidade: quem morava ali? as roupas nunca eram lavadas? E as suposições pipocavam enquanto seguíamos até uma pracinha próxima, onde o assunto, inevitavelmente, era esquecido. Eu sabia quem morava e tinha uma desconfiança de que água aqueles objetos não conheciam, pois, afinal, ali vivia, sozinho,  um senhor de cabelos brancos, muitas rugas e que, com certeza, não tinha mais condições de lavá-los. Um dia, a janela se fechou! 
     Voltei à realidade, acariciei a minha camisola, cheirei e deixei-a ali. Saí do quarto rindo, pensando no que ela provocava em quem a via esvoaçando diariamente no nono andar de um prédio no centro da cidade por onde o que mais passava eram carros e ônibus. Gargalhei! Ninguém sequer a conhecia!

segunda-feira, 26 de março de 2018

Mudanças

     Estava ela sentada na velha poltrona de couro como vinha fazendo há alguns meses. na verdade, desde que os dias haviam ficado mais quentes, sim, na entrada da primavera. Ali ela tomava seu café, olhava as nuvens ou não, havia dias em que não havia nuvens. Era só o que enxergava de onde estava, o céu. Pensava, pensava, pensava. Nos últimos anos, seu hábito de pensar estava cada vez ocupando mais tempo. Ficava, em silêncio, às vezes de camisola, outras, de pijama. Gostava de trocar todas as noites a vestimenta para dormir.
     Agora o verão já se fora. Dormira com uma coberta leve, mas, mesmo assim, ao levantar, abriu todas as janelas como era seu costume. Sentiu um friozinho gostoso e apanhou do armário um casaquinho de linha de seda. Estaria bem assim, pensou. Preparou seu desjejum, levou para a sala e sentou, olhando para o horizonte, o seu horizonte. Quando se deu conta, já estava com copo, xícara e prato, tudo vazio. seu pensamento tomara conta dela de tal forma que começou a rir sozinha ao ver que comera como uma máquina, automaticamente. Jurou que não faria mais aquilo.
     Fechou os olhos e decidiu tomar consciência de si. Mexeu os dedos dos pés, separados do tapete pelos  chinelos de borracha, e sentiu que estavam mais rígidos. Devia ser do frio da manhã! Tocou uma mão na outra, na altura peito, em posição de rezar a Ave Maria, entrelaçou os dedos, esfregou palma com palma e viu que estava com as mãos meio grossas, ásperas. Também! Não tinha mais quem lhe fizesse o serviço da casa! Encolheu-se como se quisesse voltar para dentro de um útero, foi alisando a pele das pernas, abriu os olhos e viu que já não tinha os pelos que tanto lhe incomodavam. Lembrou que não se depilava há muito tempo! Constatou, então, que havia duas peles, de diferentes partes de seu corpo se tocando, meio úmidas de suor, apesar da temperatura mais baixa. Sensação nova! Desabotoou o casaco do pijama e colocou a mão por dentro . Não acreditou! Seus seios! Aqueles que, em sua cabeça, continuavam lindos, firmes e pequenos, esparramavam-se sobre um estômago protuberante. Estômago que antes quase formava um buraco entre as costelas. O que é isso? gritou!
     Tentou levantar-se rapidamente, pensava em se analisar em pé, mas não conseguiu. Apoiou-se  nos braços da poltrona e viu que os joelhes doíam. Saiu caminhando lenta e até meio tortamente até o seu quarto, despiu-se e olhou-se longamente através do grande espelho. Depois de um tempo, ecoou alto e pausadamente pelo prédio onde morava a frase: "Eu ainda me amo!" Vestiu-se, colocou os tênis e saiu serelepe pelas escadarias, rindo  de si mesma!

terça-feira, 6 de março de 2018

Pai, obrigada!

     A morte de um grande empresário de uma cidade perto da minha me fez lembrar dos grandes homens, pelo menos era assim que eu os via na minha infância e adolescência. Este já estava com idade avançada e os demais da época já nem existem mais. E conversando pelo Messenger com uma amiga sobre o caso, veio-me à mente a figura de meu pai. Acabei relatando a ela passagens que vivem comigo até hoje, e olhem que já passei dos setenta.
     Meu pai já estava com mais de cinquenta quando eu nasci. Foi pai e avô, e isso foi incrível na minha formação. Mas quero falar do homem. Daquele empreendedor, empresário, trabalhador. Sim, ele trabalhava junto com seus funcionários, tanto na fábrica de caramelo - invenção química dele - como no escritório de vendas de terrenos.
     Muitas madrugadas, eu pequena, ouvia os passos dele, pelas quatro da manhã. Logo adormecia novamente, mas ele, ele saía de seu quarto, descia as escadas e entrava no grande galpão atrás da nossa casa onde ficava a fábrica. Vestia um grande avental, calçava os tamancos e, junto com os empregados, perto de um fogo enorme, mexia com longas e fortes pás de madeira o líquido negro e viscoso que fervia dentro de tonéis. Ah! Quase ia esquecendo! Já naquela época, meu pai cuidava da higiene. Todos amarravam um pano, em triângulo na cabeça e usavam luvas!
     Lá pelas dez, vinha a parte de que eu mais gostava. Por estas horas, eu já estava por perto dele na fábrica, Ele tirava as proteções, a gente subia para casa, ele ia para o banheiro lavar-se ou tomar banho, não sei, e eu deitava na cama de casal, no quarto de meus pais, esperando ansiosa. Ele entrava, muito silencioso, sim, meu pai era silencioso e calmo, pegava a estante de colocar partituras, escolhia uma, tirava seu contrabaixo do canto onde ficava apoiado, e começava a tocar. Eu amava escutar aquele som tirado com o passar de um arco feito de madeira e cabelos, será que eram de cavalo? Eu pensava que fossem! Gostava de pensar assim. Ele ficava passando aquele arco nas cordas do grande instrumento por quase uma hora, enquanto eu me rolava na cama de um lado para o outro, não tirando nem os olhos, nem os ouvidos de tudo que acontecia no momento mágico! Nunca adormeci ou fiz qualquer barulho! Chupava, sem fazer qualquer som, meu bico, a chupeta, como chamam hoje. E, de vez em quando, enrolava uma mecha de cabelo. Mas eu quero falar de meu pai empreendedor!
     Á tarde, ele descia novamente as escadas e entrava no escritório de vendas de terrenos. Meu pai foi um visionário que ajudou a cidade de Porto Alegre a crescer. Uma cidade à beira de um rio, só tinha de crescer para o outro lado. E nasceu e desenvolveu-se a Zona Norte. Para ele não tinha nem sábado. E eu o acompanhava no trabalho. Íamos até quase Gravataí e medíamos os terrenos, que formaram vilas e bairros,  Trazíamos de volta tudo anotado para, depois, os especialistas fazerem os mapas.
     Aprendi,  trabalhando com ele desde cedo, que trabalho feito com amor é diversão. E que, quando se acha que nada mais existe para  fazer, é só sentar calmamente, analisar a realidade, dar tempo ao tempo que, quando menos se espera, a gente está produzindo de novo.  Esqueci de falar no início do texto que estas atividades de meu pai começaram após o fechamento da loja de chapéus que estavam caindo em desuso. Não esperou quebrar, fechou! Não disse que ele era visionário?
     Pai, obrigada! A vida mudou, mas acho que consegui aprender!
   

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

Redenção! Por que não?

     Hoje, depois de muito tempo, armei-me de coragem, coloquei na cintura uma pochete com identidade, cartão de assistência médica emergencial, meu cartão de visitas, alguns trocados e fui caminhar na Redenção. Não podia mais deixar o medo dirigir a minha vida. O dia está lindo e àquela hora da manhã, tive a graça de voltar a sentir o sol acariciando meus braços, pernas, rosto. Como pude ficar sem este carinho! Carinho, seja ele qual for, alimenta-nos, incentiva-nos a querer mais, ajuda a esquecer as inevitáveis agruras, alegra-nos!
     A minha intenção era andar somente ao redor, não estava pensando em ousar penetrar entre as árvores. Talvez fosse perigoso! Perto da calçada, à beira da rua haveria mais gente, mais carros, ônibus e...poluição! De que adiantaria caminhar se estaria respirando sujeira?  Precisava entrar no pulmão da cidade, do contrário seria melhor ficar dentro de casa, resguardada, presa na torre, tipo uma princesa. idosa, mas princesa! Avistei um rapaz com um cachorrinho e fui caminhando perto dele. Com certeza, iria até o cachorródromo. Foi! E eu fui também. E o carinho do sol aos poucos transformou-se na delícia de um respirar mais saudável.
     Continuei sem sequer pensar nos medos que haviam me impedido de usufruir deste espaço, deste tesouro que temos em nossa cidade. Andava, lembrando da época em que escrevi minha trilogia com histórias que se passam na Redenção. Via-me fotografando a natureza, os monumentos. Ah, os monumentos! O Gaúcho foi trocado de lugar! Pensei que teria de mudar no meu livro também, afinal não se pode contar mentiras para crianças. Ao pegar a alameda que dá na rua onde moro,  descobri que "O Menino Nu", pequena estátua em bronze, que ficava no chafariz, no centro do Jardim das Rosas, sumiu! Quantas mudanças! 
     Voltei para casa satisfeita e feliz. Caminhar na Redenção! Por que não?
     Amanhã vou de novo!

segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

Problemão existencial!?

     Ela sempre adorou o verão. Não gostava de roupas,  não gostava de sapatos. Sentia-se amarrada, presa. nasceu para ser livre! Ainda quando pequena, sua mãe tinha dificuldades de fazer com que ela ficasse com as vestimentas. Saía de casa como uma boneca e voltava como mendiga, de calcinhas e descalço. Foi sempre assim.
     Já na adolescência sentiu que teria de controlar-se, mas mesmo assim, nos bailes, os seus vestidos eram os mais decotados. Quando veio a moda de encurtarem-se as saias, as dela eram as mais curtas.  Gostava de sentir a brisa, ou mesmo o vento nas pernas. Ela foi ao auge da satisfação quando chegaram os biquínis. Foi uma das primeiras a desfilar à beira da praia. Havia uma música na época que falava de um biquíni amarelinho, de bolinha. Comprou um de bolinhas pretas, mas azul. Fez sucesso, era bonita, alta e magra.
    Já nos seus vinte anos, foi ao Rio de Janeiro e se encantou com as senhoras, jogando cartas, numa mesa improvisada com a areia da praia e coberta por uma toalha. Porém, ela gostou realmente dos biquínis. Todas usavam, não tinham vergonha de seus corpos que já não tinha a beleza da juventude. Pareciam felizes com elas mesmas. E nossa mocinha pensou: "Vou ser como elas! Nunca vou deixar de usar biquíni!"
     O tempo foi passando, os anos foram pesando e o corpo dela já não conseguia se manter nas medidas de que ela gostava. Nas lojas, viu que o número de tamanho das roupas não era mais o mesmo e culpava os donos das confecções. Dizia que diminuíam os tamanhos para não gastarem tanto tecido. Parecia que não queria aceitar as mudanças naturais de seu corpo.
     Hoje ela vai à praia! Será que vai mesmo? Levará seus biquínis que já mostram muito mais de seus robustos seios, de sua cintura larga e de suas nádegas caídas? Terá de comprar outros? Maiores? Ou passará a usar maiôs? Que problemão! Levantou-se da cama onde estava sentada, tirou toda a roupa que vestia, olhou-se no espelho e viu a menina que gosta de ser livre!