Um calor escaldante penetrava as
entranhas daquele vilarejo situado num
recôncavo entre pequenos montes. Pouca gente ainda morava por ali, somente os
mais velhos, os jovens haviam saído em busca de melhores oportunidades. Moradias
novas não mais eram construídas, tudo havia envelhecido, tudo tinha a cor do
nada, o som do nada, o cheiro do nada. Esperança era um sentimento esquecido, a
não ser quando se pensava ou falava na senhora da Rua Única do Monte Um, sem
número: Magnólia da Glória dos Santos de Oliveira.
Poucos a conheciam, muitos a temiam.
Todos sabiam que ela existia, ninguém comprovava que estava viva. Magnólia da
Glória dos Santos de Oliveira era uma figura quase fantástica do lugar. Escondia-se
no alto, e diziam que de lá via tudo e todos, porém não aparecia para ninguém.
Os que mais perto de seu terreno chegaram algum dia jamais contaram o que viram
ou ouviram. Provavelmente não viram ou ouviram coisa alguma. Magnólia tinha o
dom de não ser vista. Um mistério!
Mistério era o fato de que, apesar
do calor e da seca pela qual aqueles recantos passavam há meses, Magnólia vivia
em meio às flores, ao verde. Como ela conseguia? Não chovia, não ventava, até
as aves da cidade haviam sumido do vale, subiram o Monte Um. Era conhecida como milagrosa, afinal tinha
“dos Santos” em seu nome, devia ser protegida por todos eles. Outros
especulavam a respeito do “da Glória” que devia trazer somente glórias e
vitórias. Sem falar do primeiro nome, que já era de flor: Magnólia! E assim,
dia após dia, o contraste ia ficando cada vez mais visível.
Crianças não mais nasciam ali, nem
mesmo os animais copulavam. Os que insistiam em ficar se arrastavam, a vida
andava rengueando, era o caminho para o nada, era o fim do fim. Se morressem,
nem enterrados eram. Os corpos ficavam onde o coração parava, murchavam, fediam,
secavam e misturavam-se à terra quebrada. E Magnólia, de seu paraíso, vendo
tudo, era o que comentavam os poucos que sobravam, olhando com certa inveja
uns, com desconfiança outros.
Um dia, do nada, sem explicação
plausível, um líquido espesso e vermelho começou a descer os montes e foi
inundando, pouco a pouco, as ruas, os terrenos, as casas. Os viventes não
conseguiam fugir, as pernas não andavam, tropeçavam nas pedras, caíam e
afogavam-se. Os que nas camas estavam eram simplesmente engolidos e esticados
ficavam. Os que sentavam às mesas, assim permaneciam cobertos pela lama
colorada, sim parecia lama, talvez um pouco mais fina. O fenômeno foi
crescendo, a cidadezinha sumiu e formou um grande lago de “água” vermelha como
sangue.
Naquele mesmo dia, quando anoiteceu,
raios de luz vindos de diferentes direções no céu focaram o Monte da misteriosa
Magnólia. Lá, agora, ao contrário de sempre, não havia mais aves, animal algum,
não havia mais flores, verde nenhum. Tudo estava tão seco quanto à cidade que
sucumbira. Em meio àquela desgraça instantânea e surpreendente, somente a
oliveira se destacava, cheia de charme, repleta de olivas, brilhando. Dela
começaram a sair sons estranhos, pareciam tambores imitando o pulsar de uma
vida forte e inabalável. A oliveira foi aumentando de tamanho, seu tronco
engrossando, seus galhos alcançando os mais longínquos cantinhos, parecia
querer levar alegria e esperança. Entre aquelas notas indecifráveis emitidas
pela árvore, um som se sobressaiu: uma espécie de voz, semelhante à voz de uma
mulher. Primeiramente ria, ria muito, gargalhava. Depois parou e passou a
falar: “Ó, vós, que aí embaixo estais! Por que não lutastes por uma boa vida?
Por que não fôreis em busca de estratégias que mudassem a corrente da história
de vossa cidade? Por que deixastes vossos filhos saírem? Por que tomastes os
desafios por obstáculos? Por que, quando mergulhados na ignorância e na
inércia, vossos pensamentos focaram no Monte Um, sugando-lhe a vida que
exuberante expunha. Vós, com vossa inveja, tentastes buscar a melhoria ás custas
de outro, não por vossos méritos, mas arrancado-lhe o que podíeis; por isso,
hoje estais como um navio que perdeu seu rumo, que ficou à deriva e o mar
engoliu.”
Um silêncio amedrontador tomou conta
do vale. Alguns segundos passaram até que se ouviu o falar piado de uma
avezinha branca que voava à beira do lago rubro. Um dos raios mudou o rumo e dirigiu-se
a ela. E aquele pequeno ser frágil, agora, brilhando em luz, disse: “Senhora
Oliveira, não fique triste! Antes de que tudo aí em cima secasse, recolhi
sementes com meu bico e estou espalhando-as na terra úmida perto do lago rubro,
rico da vida recebida de vós. Com a proteção dos Santos, tenho certeza de que
brotarão belas plantas. Vai ser a glória!”
A senhora Oliveira ficou tão feliz
com o magno gesto da ave que disse: “Avezinha
corajosa, a tua decisão salvou este lugar. Uma linda vegetação cobrirá o vale e
nela nascerá uma bela cidade que se chamará Magnólia! As pessoas que aí vão se
estabelecer terão garra e farão do lugar uma cidade visitada por muita gente
pelo vermelho das águas de seu lago e por causa da história de seu surgimento.
Alguns acharão que é verdade, outros julgarão ser uma lenda! Todos serão
felizes aí!