sexta-feira, 13 de março de 2015

Magnólia

            Um calor escaldante penetrava as entranhas daquele vilarejo  situado num recôncavo entre pequenos montes. Pouca gente ainda morava por ali, somente os mais velhos, os jovens haviam saído em busca de melhores oportunidades. Moradias novas não mais eram construídas, tudo havia envelhecido, tudo tinha a cor do nada, o som do nada, o cheiro do nada. Esperança era um sentimento esquecido, a não ser quando se pensava ou falava na senhora da Rua Única do Monte Um, sem número: Magnólia da Glória dos Santos de Oliveira.
            Poucos a conheciam, muitos a temiam. Todos sabiam que ela existia, ninguém comprovava que estava viva. Magnólia da Glória dos Santos de Oliveira era uma figura quase fantástica do lugar. Escondia-se no alto, e diziam que de lá via tudo e todos, porém não aparecia para ninguém. Os que mais perto de seu terreno chegaram algum dia jamais contaram o que viram ou ouviram. Provavelmente não viram ou ouviram coisa alguma. Magnólia tinha o dom de não ser vista. Um mistério!
            Mistério era o fato de que, apesar do calor e da seca pela qual aqueles recantos passavam há meses, Magnólia vivia em meio às flores, ao verde. Como ela conseguia? Não chovia, não ventava, até as aves da cidade haviam sumido do vale, subiram o Monte Um.  Era conhecida como milagrosa, afinal tinha “dos Santos” em seu nome, devia ser protegida por todos eles. Outros especulavam a respeito do “da Glória” que devia trazer somente glórias e vitórias. Sem falar do primeiro nome, que já era de flor: Magnólia! E assim, dia após dia, o contraste ia ficando cada vez mais visível.
            Crianças não mais nasciam ali, nem mesmo os animais copulavam. Os que insistiam em ficar se arrastavam, a vida andava rengueando, era o caminho para o nada, era o fim do fim. Se morressem, nem enterrados eram. Os corpos ficavam onde o coração parava, murchavam, fediam, secavam e misturavam-se à terra quebrada. E Magnólia, de seu paraíso, vendo tudo, era o que comentavam os poucos que sobravam, olhando com certa inveja uns, com desconfiança outros.
            Um dia, do nada, sem explicação plausível, um líquido espesso e vermelho começou a descer os montes e foi inundando, pouco a pouco, as ruas, os terrenos, as casas. Os viventes não conseguiam fugir, as pernas não andavam, tropeçavam nas pedras, caíam e afogavam-se. Os que nas camas estavam eram simplesmente engolidos e esticados ficavam. Os que sentavam às mesas, assim permaneciam cobertos pela lama colorada, sim parecia lama, talvez um pouco mais fina. O fenômeno foi crescendo, a cidadezinha sumiu e formou um grande lago de “água” vermelha como sangue.
            Naquele mesmo dia, quando anoiteceu, raios de luz vindos de diferentes direções no céu focaram o Monte da misteriosa Magnólia. Lá, agora, ao contrário de sempre, não havia mais aves, animal algum, não havia mais flores, verde nenhum. Tudo estava tão seco quanto à cidade que sucumbira. Em meio àquela desgraça instantânea e surpreendente, somente a oliveira se destacava, cheia de charme, repleta de olivas, brilhando. Dela começaram a sair sons estranhos, pareciam tambores imitando o pulsar de uma vida forte e inabalável. A oliveira foi aumentando de tamanho, seu tronco engrossando, seus galhos alcançando os mais longínquos cantinhos, parecia querer levar alegria e esperança. Entre aquelas notas indecifráveis emitidas pela árvore, um som se sobressaiu: uma espécie de voz, semelhante à voz de uma mulher. Primeiramente ria, ria muito, gargalhava. Depois parou e passou a falar: “Ó, vós, que aí embaixo estais! Por que não lutastes por uma boa vida? Por que não fôreis em busca de estratégias que mudassem a corrente da história de vossa cidade? Por que deixastes vossos filhos saírem? Por que tomastes os desafios por obstáculos? Por que, quando mergulhados na ignorância e na inércia, vossos pensamentos focaram no Monte Um, sugando-lhe a vida que exuberante expunha. Vós, com vossa inveja, tentastes buscar a melhoria ás custas de outro, não por vossos méritos, mas arrancado-lhe o que podíeis; por isso, hoje estais como um navio que perdeu seu rumo, que ficou à deriva e o mar engoliu.”
            Um silêncio amedrontador tomou conta do vale. Alguns segundos passaram até que se ouviu o falar piado de uma avezinha branca que voava à beira do lago rubro. Um dos raios mudou o rumo e dirigiu-se a ela. E aquele pequeno ser frágil, agora, brilhando em luz, disse: “Senhora Oliveira, não fique triste! Antes de que tudo aí em cima secasse, recolhi sementes com meu bico e estou espalhando-as na terra úmida perto do lago rubro, rico da vida recebida de vós. Com a proteção dos Santos, tenho certeza de que brotarão belas plantas. Vai ser a glória!”
            A senhora Oliveira ficou tão feliz com o magno gesto da ave que disse:   “Avezinha corajosa, a tua decisão salvou este lugar. Uma linda vegetação cobrirá o vale e nela nascerá uma bela cidade que se chamará Magnólia! As pessoas que aí vão se estabelecer terão garra e farão do lugar uma cidade visitada por muita gente pelo vermelho das águas de seu lago e por causa da história de seu surgimento. Alguns acharão que é verdade, outros julgarão ser uma lenda! Todos serão felizes aí!

Um comentário:

  1. Perfeito, lindo e misterioso. Prendeu-me a atenção e a respiração. Beijos, mestra.

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