segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Plenamente feliz

        Finalmente cheguei à pequena vila em meio às montanhas. Cheguei cansada, mas ainda precisava encontrar o casarão de porta e janela na calçada. Andei mais um pouco e avistei-o. A emoção tomou conta de mim, meu coração começou a bater mais forte. Estaria eu certa? Seria ali mesmo?
        Parei a uns cinco passos, bem à frente dele. meus olhos correram cada centímetro da velha casa, onde um dia serviam chá. Sim, era ali. Porém outra dúvida tomou conta de mim. Estariam elas lá dentro? Elas me reconheceriam? Fazia tanto tempo! Passo a passo aproximei-me da vidraça da porta, encostei a testa e  vislumbrei a sala. Sim, elas moravam ali. Os móveis, as cortinas de voal branco, as flores dentro e fora da casa. as poltronas antigas, os guardanapos de croché, tudo revelava a presença daquelas duas. Recuei um pouco, hesitei, fechei a mão direita, ergui-a e, meio trêmula, dei três leves batidas no límpido vidro. Agora era esperar.
        A primeira a aparecer foi a mais velha. Não havia mudado nada. Eu lembrava cada detalhe de seu rosto, de suas mãos, de seus cabelos. Claro que os anos haviam feito seus registros, mas a essência era a mesma. Quanta alegria foi-me enchendo o peito. Senti como se fosse explodir tal um balão de aniversário. Sim, um balão cheio de lembranças e saudades. Ao abrir a porta, inicialmente, ficou parada, como se não me tivesse reconhecido, como se eu fosse uma ilustre desconhecida que viera importuná-la. Isso fez minhas pernas tremerem, achei que eu fosse perder os sentidos. No entanto, o som das sílabas de meu nome seguido do calor do abraço que recebi acalmaram-me. Continuávamos as mesmas.
        Foi-me conduzindo para dentro como se a última vez que nos víramos tivesse sido no dia anterior. Perguntei pela mais moça. Nada me foi respondido. Apenas caminhávamos de mãos dadas por toda a casa. Tudo era lindo e romântico. Eu estava completamente feliz. Subimos as escadas, meus joelhos doíam. Cruzamos um hall e paramos diante de uma porta aberta. Lá estava ela: a pequena! Sim, continuava a pequena de sempre, com seu rosto alegre e seus olhos vivos. Deu um belo sorriso ao me ver, levantou da poltrona onde bordava junto à janela e veio ao meu encontro. Não disse palavra alguma e me abraçou. Havia nela também os traços dos obstáculos que a vida lhe preparara, porém, também nela, o que sobressaía era o que emanava de seu interior doce e bondoso.
        Voltamos as três para a sala de estar, tomamos um chá, conversamos sobre passado, presente e futuro. Na hora de ir, convidaram-me para ficar. E eu fiquei. Fiquei ali, no casarão de porta e janela na calçada, na pequena vila, com minhas amigas, sendo plenamente feliz!

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Aquela mulher

      Não esqueço aqueles olhos. Olhos que me trazem um misto de tristeza e de ignorância, burrice mesmo. Por onde eu vou, encontro a dona deles. Tenho a ideia até de que me segue. Não, não me segue. Está sempre por ali no mesmo lugar, na mesma quadra, no mesmo bairro. Teve dias que só de pensar naquela presença fiquei com uma raiva tão grande que troquei o caminho a fim de não encontrá-la. Às vezes esta estratégia adiantava, mas na maioria, ela tinha a mesma ideia e acabávamos nos encontrando. Indiscutivelmente eu não gosto dela. Tenho a sensação de que quer sempre me dizer alguma coisa, corrigir-me, alcançar-me com suas pernas cheias de feridas, encostar as suas mãos sujas em mim. É, eu tenho nojo dela.
     Quando passa por mim, não abaixa a cabeça, vem em minha direção como se quisesse entrar em meu corpo, em minha mente. Os olhos, cujos cílios já não existem, não piscam, parecem de uma boneca. Aquelas bonecas de louça, com partes dos braços descascados, sem alguns dedos dos pés e cabelos loiros, encaracolados e grudentos. Que medo eu tenho de que um dia ela venha se encostar em mim. Acho que morreria. Morreria de asco, de vontade de vomitar, de enjoo. O vestido é sempre o mesmo. O tecido de algodão, que fora talvez um belo rosa, tem ares de pele sem vida. Aqui e acolá uma florzinha ainda sobrevive e de seu cabo uma ou outra folhinha verde. Sapatos? Nem pensar.
     Por que ela nunca me abandonou? Por que não saiu atrás de outro alguém? Cresci com a presença dela perambulando por onde eu desfilava elegante e linda. Ela sempre velha e nojenta. Em certas ocasiões cheguei a pensar em falar com ela, no entanto, chegado o momento, fugia! Eu fugia? Ela fugia? Não sei! Não tinha nome, não tinha casa, não tinha família, não tinha nada. Tinha! Tinha eu! Eu! 
     Hoje vou partir. Não sei para onde, não sei com quem, não sei nem a razão. Ali está ela, olhando-me com aqueles olhos de pedinte, de cachorro sem dono. Pergunto se ela também vai? Não. Periga querer ir comigo. Dou-lhes as costas. Embarco. A porta se fecha. Sento à janela. Ela não está lá fora. Olho para o lado, ela vem e, finalmente, vai encaixando parte por parte de seu corpo em mim. Agora somos somente eu. Ela sempre foi eu!