sábado, 28 de abril de 2012

Da minha janela

Da minha janela, vejo muitas coisas: edifícios, telhados, janelas, um pedacinho do Guaíba, antenas, chaminés, copa de árvores. Porém, hoje, a moldura de tudo isso é um céu acinzentado, o que deixa tudo mais triste, mas eu não estou assim. A minha curiosidade não deixa que esse sentimento tome conta de mim, então, ao longe, destaca-se, entre outras, uma luz, mais forte, mais amarelada, mais viva. Sim, porque a luz pode ter vida, e eu vejo a vida crescendo através de meus olhos, através da minha imaginação. E lá, de dentro daquela luz surgem uma mulher e um homem, amantes, carinhosos, alegres. Aparece-me um menino ranhento, que mal consegue dar os primeiros passos, com as fraldas frouxas de tanto xixi, cambaleando feito um bêbado, mas com um sorriso largo de satisfação. Vejo também um cachorrinho pequeno, peludo, branco com fitinhas nas orelhas, que não para de pular do sofá para uma poltrona, desta para outro sofá, deste para a cadeira de balanço, e seus olhinhos esbanjam divertimento. Avisto agora a doméstica que, terminado o serviço da semana, se enfeita para ir curtir o sábado e o domingo junto ao amado, dançando, cantando, bebendo, conversando se amando. O telefone toca aqui, e eu atendo. A conversa se estica, as novidades são ditas e ouvidas, não olho mais para fora da janela. O tempo passa, ouço a minha voz, ouço a voz da minha amiga, emociono-me com minhas gargalhadas. Desligo o aparelho e vou até a janela. Não mais há a luz, mas tudo que ela me fizera ver continua iluminado dentro de mim.

terça-feira, 24 de abril de 2012

Nada igual!

Bota, tira! Bota, tira! Bota, tira! Às vezes, mais rápido, outras, mais devagar. Aquele homem parecia não cansar. Seus braços fortes pareciam feitos de ferro torneado, é claro. Em alguns momentos, usava os dentes, dentes brancos, grandes, sadios. Usava-os como se quisesse, com muita gana, abocanhar um pedaço do que estava mordendo, mas, quando abria a boca e lambia os lábios, via-se que nenhuma violência tinha acontecido. E continuava: bota... tira! Bota... tira! Nada ao redor o incomodava, total concentração. As pernas, em posição entre abertas e levemente dobradas, movimentavam-se de forma cadenciada, mostrando os músculos reluzentes que buscavam o equilíbrio a fim de não acontecer nenhum imprevisto que encerrasse aquela deliciosa brincadeira. De vez em quando, fazia menção de que pararia aquele ritual, porém antes mesmo que se tornasse totalmente imóvel, retornava aos movimentos: bota, tira...bota, tira... bota, tira... Ele suava! Eu já estava cansada por ele, todavia nada me fazia sair da janela. Queria ver o final daquele filme. Sim era um filme maravilhoso que eu assistia, experimentando as mais diversas emoções. De repente, um estremecer maior o fez gritar, urrar... era enorme! Sim, eu também quase comecei a gritar, afinal nunca vira um peixe daquele tamanho. Havia valido a pena todo o esforço, todo o cansaço, todo o tempo usado!

domingo, 22 de abril de 2012

Maria

Todos os dias, ela ouvia o apito do pequeno vapor que passava todos os finais de tarde, cortando as águas do rio que fazia da cidade onde morava um lugar quase mágico. Não havia nada melhor do que abrir o portão de casa e correr, sentindo na sola dos pés o capim fino e cheio de rosetas, a areia grossa e quente, a água fria e lamacenta, exatamente, nesta sequência. Era isso que fazia ao ouvir aquele som. E de dentro da água, com um largo sorriso nos lábios, que contornavam a boca com poucos dentes, vestido molhado, balançava os braços finos em grande aceno para os desconhecidos que ocupavam a embarcação. Era um ritual! Um dia, Maria não mais ouviu o apito, o vapor não mais passou, ela não mais correu, nem acenou. Onde andará Maria?

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Um pequeno conto sem nexo

O rio estava tão calmo, a àgua tão parada que podia-se dizer que reproduzia bem a frase: "Parecia um espelho." O céu estava num tom azul cinzento, mas sem nuvens, limpo. O sol... não brilhava como em outros dias, em outros lugares. O barco era pequeno, um barco de pesca. Nele dois homens, em pé, equilibravam-se enquanto aguardavam para puxar a rede. Um era mais velho, mais forte, mais alto, mais pescador. Outro nem precisa dizer. Eles não falavam, nem se olhavam. Tudo corria numa paz tão grande que chegava a doer. A vida deles parecia não passar daquilo, pescar. Mas o quê? Fazia dias ou, talvez, semanas que ali vinham e ficavam por muitas horas. Ninguém os conhecia na pequena cidade. Surgiam de um momento para o outro como se brotassem das profundezas do rio. Ao cair da tarde, sumiam como se abduzidos por uma nave invisível. Porém naquele domingo de céu cinzento, de uma hora para outra, a água do rio começou a escurecer, ondas enormes passarem a se formar, o céu cobriu-se de relâmpagos, mas nada disso tudo abalava a postura daqueles dois.Como duas estátuas de bronze, largaram as redes vazias, elevaram as mãos para cima, alongaram seus corpos e foram, foram ao espaço sideral em busca não sei de quê!

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Um banheiro bizarro

O vapor da água do chuveiro não deixava ver-se nada na enorme sala que, entre outras coisas, servia de banheiro. Uma cortina de plástico rosa delineava o que se podia chamar de box. O piso de um tom avermelhado era o mesmo em toda a extensão da peça, sem desnível, o que fazia com que se tivesse cuidado para não molhar tudo ao se banhar. Era inverno, e fora da cortina de plástico o frio tomava conta. Sequei-me rapidamente, o corpo tremia, e eu dava pulinhos. O que será que minha tia Maria guardava naqueles armários que cobriam as paredes? Enrolei-me na toalha branca, já meio rala, que ela me dera e tentei abrir uma das portas. Nada, não consegui, estava chaveada. Dei mais alguns passos e deparei-me com outra porta, agora, com um cadeado. Mas o que ela guardava, assim , tão fechado, como se fossem segredos? A minha curiosidade não cessava, e eu dei meia-volta e lá estava uma prateleira com uma cortina de algodão grosso, floreado em cores vivas, encobrindo o que lá dentro estava. Ah! Que maravilha! Finalmente iria descobrir, pelo menos, parte do tesouro. Peguei com o polegar e o indicador delicadamente o pano e, à medida que ia abrindo, ia baixando a cabeça como se eu não quisesse que ninguém visse o que eu veria. A toalha desenrolou-se, e eu levei um susto de novo com receio de que alguém me visse. Olhei rapidamente para o trinco da porta daquele ... banheiro e constatei que a tranca estava na posição de fechada. Coloquei a toalha e voltei a olhar as prateleiras. Garrafinhas, garrafinhas e mais garrafinhas de um líquido escuro lá estavam como a me esperar. Não perdi tempo. Peguei uma delas, tive dificuldade, mas tirei a rolha e coloquei na boca. Era suco de uuuuuuuuuuuuuuva! Bom! Muito bom! Suco de uva estocado no banheiro! Quem iria desconfiar? Aquele virou o meu segredo. Naquelas férias, todos os dias, na hora do banho, eu me deliciava com o suco. Perdi as contas de quantas garrafinhas esvaziei. Será que minha tia Maria alguma vez desconfiou do que acontecia? Pelo menos ela nunca falou!

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Uma cena poética

Antônio foi se chegando de mansinho, meio cambaleante, tomando cuidado para não cair. Largou a trouxa sobre uma pedra e continuou de pedra em pedra rio a dentro. A garrafa plástica de três litros vazia, que já trazia na mão direita, foi afundada na água poluída até que encheu. Antônio voltou para a beira, segurando-a com as duas mãos. Largou-a ao lado da trouxa, que foi aberta e de onde tirou uma das peças de roupa. Foi pegando uma a uma e, como num ritual, fez com todas as mesmas ações: pegava a roupa, entrava no rio, molhava-a, esfregava bem, tirava e botava na água como se tivesse a enxaguar, torcia, trazia para a beira e pendurava num dos galhos de uma árvore, que parecia estar ali orgulhosa a lhe servir, tamanha era sua verdura e brilho. Quando tudo estava lavado, Antônio tirou uma por uma as roupas do corpo, fez o mesmo e, depois, sentou numa daquelas pedras, que também brilhavam como que de satisfação, pegou a garrafa e bebeu...bebeu...bebeu muito daquela água. Foi recostando-se devagarinho até deitar-se totalmente. E lá estava: Antônio deitado pelado, as roupas coloridas enfeitando a árvore, e o rio imenso servindo de moldura.

domingo, 15 de abril de 2012

Por que você me quer?

Lado a lado eles caminhavam com passos firmes naquele corredor. Papéis amassados e outras sujeiras decoravam o chão não mais branco dos ladrilhos já sem brilho também. O sol penetrava em listras pelas basculantes e ia batendo nos olhos dos dois. Nada se ouvia, a não ser a batida seca dos sapatos com sola de borracha que eles calçavam. Um tinha no rosto a firmeza de quem sabia o que queria, para aonde ia, o que esperava. Outro seguia o primeiro um pouco atrás, sem deixar de estar ao sua direita. Este não mostrava a mesma certeza nos atos, parecia ir por ir, sem saber exatamente aonde iria chegar, ignorando o porquê daquela caminhada silenciosa. A poucos metros da porta à frente, ouve-se: por que você me quer?

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Nossa avó enlouqueceu!

Nesta Páscoa, assim como aconteceu no último Natal, nossa avó insistiu que a festa fosse na sua casa. Ligava para todos, filhos, netos e noras. Não queria que ninguém faltasse. Realmente, ela vinha de uma família que tradicionalmente gostava de festejar com todas as pompas e rituais cada um dos eventos religiosos. Não é preciso dizer que, desde pequenos, éramos obrigados a participar de encenações, orações e tudo mais. No entanto, hoje, estávamos preocupados pois em dezembro tivemos uma surpresa com a confusão que ela, a nossa tão cheia de energia avó, fez. Porém, acabou nos convencendo de que tinha feito de propósito só para brincar conosco. Então, sem poder convencê-la a ir à casa de um de nós, fomos todos a sua casa. Sabíamos que lá encontraríamos enfeites alusivos ao coelhinho, ovos escondidos por toda parte, brincadeiras de adivinhação e muita comida e bebida. Ela realmente sabia fazer uma festa temática, ainda mais, se fosse religiosa. Na hora marcada, chegamos, casualmente, todos juntos. Tocamos a campanhia, nossa avó acionou a abertura da porta lá de seu apartamento, subimos, ocupando os dois elevadores e batemos na porta. A porta foi aberta e lá estava nossa avó vestida de...Papai Noel!

sábado, 7 de abril de 2012

Sem pruridos!

Quando me dei por conta, estava beijando aquele pequeno crucifixo que a moça segurava de maneira respeitosa em suas mãos. Não era qualquer um que podia segurá-lo. Não sei, deviam ser pessoas que passaram por algum curso ou que demonstraram durante suas vidas o quanto são dedicadas aos rituais da Igraja Católica. Eu não era uma dessas pessoas, mas tinha a plena consciência de o quanto Jesus e seus presseitos eram importantes para mim em todos os momentos de minha vida: tristes e alegres. Ainda quando criança, sempre cumpria com os deveres de boa critã, ia à Missa, comungava e rezava muito por qualquer necessitade, até mesmo para pedir que aquele garoto bonitão da minha sala de aula que não me dava atenção passasse a me notar. Depois, quando casei, por circunstâncias da vida e por ter me ligado a uma pessoa que não tinha hábitos religiosos, acabei me afastando. As crianças enchiam os meus dias, e o trabalho de professora ocupava até minhas horas de folga. Quase não tinha tempo para rezar. Hoje, sem saber como e por quê, meus hábitos voltaram. Rezo, vou à Igreja, comungo, sinto-me bem fazendo isso, consagrando Jesus. No entanto, o foco mudou: hoje agradeço, agradeço pelo tempo que está me permitindo que tente realizar meus sonhos; agradeço pela força que recebo ao ter de enfrentar as tribulações da vida; agradeço pelos filhos que Deus me deu, talentosos, amorosos, lindos por dentro e por fora(há que se deixar enxergar essa beleza deles); agradeço pelos netos que me incentivam, sem ter consciência, a viver cada vez de forma mais alegre, tentando deixar para eles, através do exemplo, o legado, sem preço, de ter uma vida que valha a pena. E acho que foi por tudo isso que ontem, durante a celebração do Corpo de Deus, fui levada a beijar a imagem de louça fria, triste e, até feia, sem nenhuma vergonha, sem nenhum prurido, sem preconceito. Beijar o que outras bocas haviam tocado!

Graça?!

Houve um tempo em que eu ficava quase sem graça, ansiosa esperando o que minha mãe ia fazer para me fazer graça! Hoje eu faço graças para agradar àqueles que acham graça das graças que faço para presentear aqueles que são minhas graças cheias de graças! Que graça, né? Meio sem graça...!

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Pedro Henrique

Ele ia a minha frente. Não sei por que eu não conseguia deixar de segui-lo. Era grande, forte, robusto. Seu nome era Pedro Henrique. É Pedro Henrique! Dobrou à direita e à direita eu fui. Acelerava mais, e eu nem sempre tinha forças para manter-me perto dele. Porém não o perdia de vista. Começou a subir uma lomba, não mais corria como antes. E eu?! De que maneira, com minha idade, teria condições de acompanhá-lo? Rezei e pedi a Deus que me desse forças para não desistir no meio do caminho. Dai-me persistência! Dai-me perseverança! E eu ia, mais lentamente, mas ia. O que me fazia não parar de ir atrás de Pedro Henrique? Atração? Curiosiade? Desconfiança? Sei lá! Eu não desistia! Ele já chegara ao topo da colina e começara a diminuir o andar. Fez menção de que dobraria à esquerda, todavia não havia ali uma rua. Dobrou, era a entrada de carro de uma bela casa. Eu... parei meio à distância e fiquei olhando... ou eu cuidava? Não sei. Algum pressentimento não me deixava chegar mais perto. Talvez aquela atração ou curiosidade ou desconfiança se transfomara em medo. Então, por que não me tocava ladeira abaixo? Escondi-me atrás de uma árvore e, enquanto meu coração batia como se fosse saltar do peito, meus olhos quase saltavam do rosto na ânsia de não perder nada. Meu perseguido parou, fez que ia entrar, mas... buzinou! Da porta da casa saiu uma belíssima loira, alta de óculos escuros, lindamente vestida com um míni casaco vermelho e meias de seda pretas. O motorista saiu do Pedro Henrique, abriu a porta para a madame, entrou novamente, deu partida e sumiu rua abaixo. Nunca mais vi o Pedro Henrique. Também isso é nome que se dê a um táxi? E ainda escrito bem grande, em letreiro branco no vidro de trás!