segunda-feira, 15 de março de 2021

O Pote da Gelatina


     Abri o armário e lá estava o pote que eu queria, o que eu precisava. Botei a mão nele com todo o cuidado, não podia correr o risco de deixá-lo cair.  Um simples pote de vidro com tampa que havia recebido de presente logo no início de meu casamento, não lembro de quem. 

     Logo que o ganhei, levei um bom tempo experimentando colocar dentro dele diferentes alimentos. Bolachas e biscoitos logo amoleciam, não era bem vedado; um bolo não caberia nele; e, assim, por alguns anos ele foi usado para guardar sobras. Eu gostava dele, mas não gostava da utilidade dele.

     Quando meu primeiro filho chegou à idade de comer gelatina, uma luzinha acendeu-se na minha cabeça e finalmente achei uma bela utilidade para o pote. E assim, enquanto o primogênito se desenvolvia, batia palmas e se lambia ao ver o pote de gelatina após a sopinha. Como não bater palminhas para algo colorido, brilhoso e gostoso. Propositadamente a cada dia eu fazia a gelatina de um sabor e consequente cor diferente. E eu gostava daquele momento, daquele pote.

     Meu segundo filho veio quase em seguida e o pote continuou a ser usado e a encantar. Na época, contratamos uma moça, a Vera, que me ajudava no cuidado dos filhos. A gelatina era eu que preparava, mas às vezes ela  queria fazer, e eu sempre a avisava para não quebrar o pote. As crianças cresceram e o pote ficou pequeno. Um pacotinho de gelatina, que era o que ele suportava direitinho, não era o suficiente. E por muito anos o pote ficou de lado, sem utilidade nem para as sobras, pois vieram os de plástico.

    A idade me fez voltar a comer gelatina. Fazia dois pacotinhos, como fora o costume nos velhos tempos, colocava num pote maior e acabava por enjoar da coitada. Endurecia, aguava e ia para o lixo. Dei-me conta de que deveria fazer apenas um pacote. Saí à procura de um pote menor. E foi aí que o encontrei. Um simples pote de vidro, com 51 anos de idade, fez-me lembrar de momentos maravilhosos e me fez escrever este texto para alertar sobre a importância de se guardar pequenos objetos que, por um tempo, estavam fora de uso.




     

sexta-feira, 12 de março de 2021

Um filme sobre rodas

      As rodas, sim, as rodas do ônibus! Eu as ouvia deslizando, às vezes, suavemente, outras, batendo rispidamente nos buracos da estrada. Elas iam rapidamente na direção de seu destino. Diferente de mim, que não saia do lugar. Minha cabeça reclinada para a janela fazia com que meus olhos fossem se deliciando com o que viam. Assistiam a um filme inédito da natureza. O filme de hoje, de agora, porque daqui a pouco,  a exibição seria outra. A exibição dos campos verdes, do relevo suave das macegas que, com certeza, escondiam segredos jamais revelados. O céu azul fazia o fundo quase musical com a mistura das nuvens que não paravam. Quem ia mais rápido o ônibus ou elas? Aqui e acolá uma casinha, uma fumaça saindo de um chaminé, um cortina esvoaçando para fora de uma janela aberta! Gado, árvores, lago, fios elétricos, plantações! E eu imóvel!  Sentada na poltrona vinte e sete.
      Vinte e sete! Engraçado sempre achei que este era meu número de sorte, mas nunca ganhei nada com ele. Nunca? Como nunca? O que estava acontecendo não era um sorte? Estar sentada numa poltrona confortável, à janela, num ônibus maravilhoso, assistindo a um filme único, não é algo de que poucos conseguem desfrutar? Claro que era meu número de sorte! 
      Olha um lago! Que lindo! Uma pequena ilha nele com uma casa nela. Uma pontezinha de madeira para lá chegar! Instantaneamente, veio-me à mente um castelo que conheci no interior da Alemanha. A ideia era a mesma, uma ilha, uma ponte, uma casa. Mas quanta diferença! A de agora, simples, quase pobre, de madeira, um andar só. A de lá, majestosa, na verdade, um castelo com muitos andares, muitas janelas, muitas torres com pontas em busca do céu. O lago daqui pequeno, água suja, cara de açude. O de lá enorme, muita água, limpa com veleiros navegando. Lá a ponte era forte, podendo passar carros e carruagens. Aqui, frágil com passagem para uma pessoa. Mas e daí? O prazer de ter uma casa numa ilha no meio de um lago, com certeza, é o mesmo!
      O que é isso? Um lixão! Casebres perto! Crianças brincando, hortinhas junto a dejetos! É, no filme da vida, da estrada, nem sempre tudo é belo e causa alegria. Fechei os olhos não para não ver, mas para poder pensar mais profundamente sobre as desigualdades do mundo. Devo ter adormecido, porque quando abri os olhos já não conseguia ver nada. A noite havia descido por completo, encerrado o filme e fechado as cortinas do meu deleite.

(Escrito em algum dia de outubro de 2019)
     

Sons da Pandemia 02

    Era Dia dos Pais! Em meia a pandemia, sozinha, fazia meus exercícios à beira do janelão da área de serviço, na tentativa de pegar uma nesga de sol nos braços. Meus filhos pais já haviam recebido meus cumprimentos pelo celular. O momento era de total silêncio. Será? 
    Às vezes a gente pensa que está em meio ao silêncio, talvez porque não estarmos emitindo uma palavra, um cantar. Comecei a prestar atenção, como se abrisse mais minhas orelhas para que captassem tudo que fosse som. E assim passei a ouvir o arrastar do tênis quando chegava ao chão, carregado por uma de minhas pernas após ter feito um ângulo de 90º para trás. Dez repetições, dez vezes o mesmo som. Então veio o teste com a outra perna, e o som se repetiu. Dei um sorriso. Que bobagem estou fazendo. Mudei o exercício e esqueci o som. Esqueci?
    Comecei a ouvir o som de vozes, vozes que trocavam palavras, palavras que transmitiam ideias, mas que chegavam a mim num turbilhão sem que conseguisse entendê-las. Pareciam vir de cima, difícil ter certeza do local do som. Em meio à confusão de sílabas, aparentemente, desconexas, vieram as risadas. Rir! Claro, rir emite tantos diferentes sons e nos instiga a rir também, pelo menos a sorrir. E como é bom! 
    Os risos provocaram os latidos, e estes, sim, penetram em nossos ouvidos e causam-nos alguma reação. Vontade de dizer para parar, vontade de pegar o bichinho no colo, vontade de ter um cãozinho. Eu? Claro que não, já estou delirando. Só quando eu ficar bem velhinha. Será que já não estou?
    Apito estridente incessante! Meu celular avisando que já havia ficado vinte minutos pegando sol. Desliguei o alarme, parei, tentei ouvir mais alguma coisa que me chamasse atenção. Ouvi! Ouvi meu estômago roncando. Era hora de me alimentar!    

(Escrito em 09 de agosto de 2020)