quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Aquela mulher

      Não esqueço aqueles olhos. Olhos que me trazem um misto de tristeza e de ignorância, burrice mesmo. Por onde eu vou, encontro a dona deles. Tenho a ideia até de que me segue. Não, não me segue. Está sempre por ali no mesmo lugar, na mesma quadra, no mesmo bairro. Teve dias que só de pensar naquela presença fiquei com uma raiva tão grande que troquei o caminho a fim de não encontrá-la. Às vezes esta estratégia adiantava, mas na maioria, ela tinha a mesma ideia e acabávamos nos encontrando. Indiscutivelmente eu não gosto dela. Tenho a sensação de que quer sempre me dizer alguma coisa, corrigir-me, alcançar-me com suas pernas cheias de feridas, encostar as suas mãos sujas em mim. É, eu tenho nojo dela.
     Quando passa por mim, não abaixa a cabeça, vem em minha direção como se quisesse entrar em meu corpo, em minha mente. Os olhos, cujos cílios já não existem, não piscam, parecem de uma boneca. Aquelas bonecas de louça, com partes dos braços descascados, sem alguns dedos dos pés e cabelos loiros, encaracolados e grudentos. Que medo eu tenho de que um dia ela venha se encostar em mim. Acho que morreria. Morreria de asco, de vontade de vomitar, de enjoo. O vestido é sempre o mesmo. O tecido de algodão, que fora talvez um belo rosa, tem ares de pele sem vida. Aqui e acolá uma florzinha ainda sobrevive e de seu cabo uma ou outra folhinha verde. Sapatos? Nem pensar.
     Por que ela nunca me abandonou? Por que não saiu atrás de outro alguém? Cresci com a presença dela perambulando por onde eu desfilava elegante e linda. Ela sempre velha e nojenta. Em certas ocasiões cheguei a pensar em falar com ela, no entanto, chegado o momento, fugia! Eu fugia? Ela fugia? Não sei! Não tinha nome, não tinha casa, não tinha família, não tinha nada. Tinha! Tinha eu! Eu! 
     Hoje vou partir. Não sei para onde, não sei com quem, não sei nem a razão. Ali está ela, olhando-me com aqueles olhos de pedinte, de cachorro sem dono. Pergunto se ela também vai? Não. Periga querer ir comigo. Dou-lhes as costas. Embarco. A porta se fecha. Sento à janela. Ela não está lá fora. Olho para o lado, ela vem e, finalmente, vai encaixando parte por parte de seu corpo em mim. Agora somos somente eu. Ela sempre foi eu!

Um comentário:

  1. Fantástico! Cada palavra, cada frase conduzem a algo inimaginável. E então... Beijos.

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