sábado, 10 de janeiro de 2015

Minha mulher

        A noite estava escura apesar da Lua estar na fase cheia. A tarde já havia sido triste, sem sol, com chuvas. O verão chegara de mau humor, trazendo dias febris. Trazia também um céu furioso que, de vez em quando, decidia soltar sua raiva inundando alguns de medo e outros de prazer. De repente a luz apagou, o telefone morreu, a televisão desligou, o refrigerador não mais gelou, o ventilador lentamente deixou de assoprar. Breu! O que fazer?
        Aceitei o convite de minha mulher para sentarmos na sacada. Ali estava agradável. Estávamos casados há mais de vinte anos. Durante esse tempo vimos  e vivenciamos sem parar o desenvolvimento do muitas tecnologias, a maioria na área da comunicação. Nossa filha já não necessitava tanto de nós, já não trocava conosco ideias, já tinha o seu companheiro. Ficamos naquele silêncio perturbador. Aquele silêncio de quem sente vontade de falar, de conversar, mas não sabe como dar início. Sentia que ela, de vez em quando, olhava-me com o canto dos olhos. Um estranhamento tomava conta de nós, não tínhamos mais assunto! E a luz não voltava!
        Com o mesmo impacto que a energia do bairro nos deixara, minha mulher me propôs dizer um texto que há muito ela sabia. Não esperou a minha reação. Desatou a falar com diferentes entonações, revelando diversas emoções. Eu nem me mexia, nem a olhava, tinha medo, medo de que ela estivesse saindo do controle racional de sua ações. E estava com certeza, pois levantou, dirigiu-se ao muro da sacada e, com gestos extravagantes e voz empostada, continuou até o fim a sua apresentação. Isso durou um bom tempo. Ouvi uns cochichos na sacada do andar superior. Eles não tinham viajado, para minha vergonha. Mantive-me estático enquanto ela, minha mulher, aquela que eu havia escolhido para companheira de toda vida, fazia gestos de agradecimento, como se estivesse num palco. Gritava: "Obrigada! Obrigada!"
        A luz voltou, a campainha tocou, eu levantei e fui abrir a porta. Era a vizinha, perguntando se minha mulher estava bem. Não soube o que dizer. 

2 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderExcluir
  2. Lourdes,
    Eu postei um comentário semelhante num texto teu de 2013, mas não sei se tiveste oportunidade de lê-lo. É que eu acho surpreendente o poder de concisão que tens em tuas narrativas. Escreves aquilo que é essencial e de uma forma poética. Espero conseguir um dia ter esse dom. Teus textos têm me ajudado muito.

    ResponderExcluir