domingo, 19 de janeiro de 2014

Lembranças à janela

         A aproximação da janela por causa do intenso calor, as grades de ferro que a impediam de colocar o rosto para fora, a fez voltar no tempo. E ela se viu andando no carro novo de seu pai. Era um Ford 51, lindo, azul, de molejo tão suave que sua mãe tinha enjoos cada vez que saíam para dar uma “voltinha” como ele dizia. Quando nascera, nossa protagonista já fora da maternidade para casa no “auto” da família. E desde muito pequena andavam pelas ruas da cidade, devagar, curtindo a paisagem, bem diferente da de hoje. Passavam pelo cais! Como a menina gostava de passar ali. Adorava ver os marinheiros vindos de diversas partes do mundo. Àquele tempo, o porto era importante e muito movimentado. A menina abanava para os rapazes que saíam dos navios e era retribuída. Isso a deixava excitada, o uniforme deles a fascinava.
         Depois do porto, bem numa ponta de terra contornada pelo rio, estava o grande prédio  com janelas pequenas, janelas com grades de ferro, janelas por onde os homens que ali estavam tinham uma pequena visão do movimento da cidade, dos carros, dos bondes, das carroças que passavam e dela, da nossa menina que, depois de abanar efusivamente para os marinheiros, abanava do mesmo jeito para os presos, os bandidos, os ladrões, os assassinos, que lhe correspondiam, amontoados nos pequenos espaços de luz, muitas vezes, mais alegremente do que os uniformizados. Com certeza, era uma forma de se sentirem participando de tudo, da vida.
         Na inocência de sua infância, a menina não fazia diferença entre eles. Do que ela gostava era da farra de se comunicar com todos. Estranhava que uns andavam pelas ruas, em grupos, conversando se divertindo e outros estavam trancafiados naquele edifício enorme, velho e não muito bem cuidado. Mas seu pai, durante esses passeios, ia explicando à garota as razões das diferenças e com isso ia passando valores para ela.
         Chamaram-na, e ela acordou das lembranças que a estavam emocionando. Sentia tanta falta daquela época em que, quando tinha uma pergunta, tinha um pai que lhe respondia, dava explicações, justificativas. Sentiu saudade do cheiro que aflorava ao passarem pelo porto. Lembrou, sorrindo, o carro deslizando meio de lado quando os pneus trafegavam sobre os trilhos dos bondes. Ouviu o apito dos guardas que faziam o seu vai-e-vem constante e também abanavam disfarçadamente para ela e, até, esboçavam um pequeno sorriso.
         — Senhora, o seu ingresso.
         Nossa menina, hoje uma senhora, afastou-se da janela gradeada, ainda suando. Não sabia se o suor era do calor que não diminuíra ou se das emoções que tivera ali. Entregou o ingresso, sentou-se numa das poucas cadeiras e se deu conta de que ali, onde agora atores encenavam uma peça de teatro, talvez outros seres humanos tenham sofrido, apanhado, passado fome, calor, frio, justa ou injustamente. Sentiu um arrepio pelo corpo todo!


(Texto escrito no dia 03 de janeiro de 2014, em Capão da Canoa)

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