quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

O morredouro

        Era uma, duas, três, mais, muitas mais, todas as noites. Começavam a chegar à tardinha. Entravam pelas janelas, pelas frestas, por onde passassem os seus corpinhos delicados. Vinham como se estivessem estado em uma animada festa, onde muita bebida fora servida. E elas beberam, beberam, muito. Todas, todas sem exceção invadiam a minha sala como se a elas pertencesse. Andavam de um lado para o outro sem ao menos respeitarem a minha presença. Iam de um canto a outro, cambaleando, às vezes pelo chão, outras  pelo ar, rodeavam as lâmpadas, faziam um ruído que dava medo.
        Medo! Sim, é essa a sensação que a maioria das pessoas têm ao vê-las por perto. Eu não, desde pequena, tínhamos um bom relacionamento, o que surpreendia muita gente. Eu gostava de falar com elas, de dizer o que deviam fazer, de afastá-las, principalmente, das crianças, que se assustam à aproximação de, mesmo que seja, uma representante apenas. Nunca consegui passar esse dom, é, acho que é um dom, nem para meus filhos, nem, mais tarde, para meus netos. Estes ficavam encantados, contavam para os coleguinhas de escola. Achavam um grande feito da avó.
        Mas essa invasão e seu resultado estava me deixando intrigada. Outra noite, decidi colocar os olhos em uma delas e acompanhar toda a sua aventura em minha sala a fim de entender o que acontecia para que chegassem ao que chegavam no dia seguinte.
        No início, quase fiquei tonta de tantas voltinhas que ela dava, parecia realmente estar embriagada. Porém aos poucos seus voos foram ficando mais baixos até alcançar o parquê, o parquê e o tapete. Andava de um lado para o outro, fazia curvas, voltinhas de 360 graus, com certeza, para ela meu chão era o deserto de Saara, tamanha as distâncias que percorria e percorria e voltava e voltava e fazia curvas e curvas. Às vezes a perdia de vista, ela transitava por espaços escuros, embaixo de móveis, mas logo aparecia, ligeirinha, tonta, bêbada. Já estava cansada de acompanhá-la, passava pela minha cabeça deixar tudo de lado, no entanto precisava descobrir o mistério. Aos poucos ela foi percorrendo espaços menores, até se estabelecer num terreno branco do tapete. Mas parar, ela não parava, rodava em cima de si mesmo, debatia-se.  Sua vida se terminou entre duas flores vermelhas do tapete, como provavelmente passara toda a sua existência. Foi aí que me dei conta de que algo muito sério estava sendo feito para aquelas abelhas. Ao ver a pobrezinha que eu acompanhava tremer as asinhas, sacudir  com esforço o rabinho - se é que abelhas têm rabo, não sei como se chama a parte de trás, normalmente, pretinha, onde elas têm  o veneno - ao vê-la lutar desesperadamente, dei-me conta de que elas estavam sofrendo alguma ação de crueldade, elas estavam sendo envenenadas, elas lutavam pela vida. E eu chorei, chorei pelo sofrimento delas.
        No dia seguinte, conversando com uma pessoa do bairro, fiquei sabendo que tem gente colocando veneno em colmeias de abelhas. Pode? Continuo, dia após dia, pela manhã a juntar seus corpos secos. Minha sala virou morredouro de abelhas. Que triste!


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